segunda-feira, 22 de maio de 2017

Aécio e a democracia de conveniência



* Por Paulo Moreira Leite


 
Aécio Neves não é -- com toda certeza -- o primeiro homem público brasileiro a trocar os princípios democráticos pelas conveniências políticas e projetos pessoais.
    Mas poucos agiram como ele. Após a derrota na eleição presidenciais de 2014, Aécio tornou-se o primeiro líder de uma conspiração para sabotar a vontade das urnas, que culminou na deposição de Dilma Rousseff em maio-agosto de 2016. Apanhado na rede das delações de Joesley Batista,  dois anos e cinco meses depois, este comportamento dificulta seus esforços para convencer a Justiça e os brasileiros -- de que é inocente até que se prove o contrário. 
   Sem entrar no mérito das acusações, quero deixar claro que discordo do "afastamento" do mandato de Aécio Neves por uma decisão liminar de Edson Fachin, ministro do STF. Não vejo discussão real a este respeito. O "afastamento" me parece um eufemismo político -- sem amparo na Constituição -- para suspender os direitos políticos de um senador eleito em 2010 com 7,5 milhões de votos. Conforme o artigo 55 da carta de 1988, deputados e senadores só podem ser cassados pelas suas próprias casas, "por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa".
   Também não vejo uma justificativa plausível para a prisão preventiva da irmã Andrea Neves. A exibição da imagem de Andrea na prisão, com jaleco laranja de presidiária, é um espetáculo desnecessário e degradante, incompatível com garantias individuais que asseguram a toda pessoa -- mesmo acusada da maior barbaridade do Código Penal  -- o direito a um julgamento justo, com a presunção da inocência até que se prove o contrário. Desde 1984 nossa legislação protege toda pessoa presa contra "qualquer forma de sensacionalismo".
    Não é fácil, contudo, defender os direitos e garantias individuais de Aécio. Em sua atuação política recente, ele construiu uma personalidade política que nada tem a ver com o avô Tancredo Neves, respeitável liderança das lutas democráticas do país. A referência é Carlos Lacerda, adversário de Tancredo em 1954 e 1964, principal arquiteto civil do golpe que derrubou Goulart.  Como Lacerda, Aécio negou para os outros, aqueles direitos -- universais -- que mais tarde iria defender para si.
   Depois de empregar suas antigas ligações nos quartéis e a máquina do governo da então Guanabara para  sustentar o golpe militar contra o governo constitucional de João Goulart,  Lacerda acabou cassado por dez anos. Numa tentativa de resistência,  tentou reunir adversários que havia combatido de modo feroz e injusto, como Jango e Juscelino, através de um projeto de vida curta chamado de Frente Ampla. A denúncia contra a ditadura podia ser -- e era -- correta. Mas a incoerência antidemocrática de Lacerda, o caráter tardio e obviamente personalíssimo de sua reação, lhe tiravam  credibilidade.
    Estava identificado demais com a ditadura para ser levado a sério. Deixou de agradar os generais, que passaram a temer sua liderança civil num regime que se consolidava como regime de exceção e não queria lideres sem farda.  Já não tinha forças para mobilizar o eleitorado original, em nome de uma democracia que havia abandonado. Mesmo JK, que apoiou o golpe militar em sua fase inicial, não era parte da conspiração. Sofreu o golpe e adaptou-se a ele.
    Em dezembro de 2015, ocorreu um episódio exemplar do comportamento de Aécio. Foi quando a Segunda Turma do STF atendeu a um pedido de Rodrigo Janot que, sem demonstrar muita convicção, solicitava a prisão preventiva de seu colega Delcídio do Amaral. Os indícios reunidos contra Delcídio, até ali, eram muito menos graves do que o pedido de 2 milhões de reais de Aécio para Joesley Batista -- que incluíram a logística para a entrega do dinheiro -- e maquinações milionárias em torno da presidência da Vale. O fato é que a postura de Aécio em relação ao colega, titular do mesmo mandato seletivo, deixou a desejar. Mesmo dizendo lamentar a prisão, no plano "pessoal", justificou a medida -- porta de entrada para uma delação premiada contra Lula e o PT -- como "necessária," no plano "institucional".
     Em busca da opção mais conveniente para prejudicar seus adversários, Aécio ainda partiu para cima de Dilma, estranhando que não fosse chamada a explicar-se. "É incrível que a presidente da República não se manifeste, como se não tivesse absolutamente nada ver com isso, como se os delatores presos, réus confessos e já condenados, não tivessem sido indicados pelo seu governo”, disse.
     Em abril de 2016, quando Sérgio Moro divulgou uma conversa telefônica entre Dilma e Lula, Aécio fulminou a presidente e o candidato a ministro da Casa Civil. Referindo-se a um diálogo que não poderia ter sido gravado e muito menos divulgado, disse  que a conversa dos dois representava a "falência definitiva de um governo que ultrapassou todos os limites éticos e morais para defender os aliados".
    Integrantes do núcleo de Aécio no PSDB já agiam no mesmo tom nas primeiras semanas depois da derrota de 2014. O voto de Gilmar Mendes no TSE, aprovando as contas da campanha de Dilma "com ressalvas", que abriram uma janela para investigações  sem fim, é incompreensível sem um ambiente de hostilidade que vinha da campanha tucana. Em abril de 2015, integrantes da bancada que, sob a liderança de Eduardo Cunha, emparedava a presidente Dilma Rousseff na Câmara de Deputados, soltaram ratos no plenário de uma CPI do Congresso, num esforço para tumultuar o depoimento do tesoureiro João Vaccari. Na mesma sessão, após muitas proclamações e gestos teatrais, o deputado Carlos Sampaio, um dos responsáveis pela área jurídica da campanha de Aécio, dirigiu-se a Vaccari em tom de ameaça: "O senhor tem tudo para ser preso e o PT para ser extinto". (Na semana seguinte ao depoimento, Vaccari seria conduzido a Curitiba, onde se encontra preso até hoje). 
    Ninguém deve ter direitos sonegados em função dos erros que comete. Se fosse assim, a Justiça não precisaria ser aplicada a delinquentes nem a criminosos -- apenas a anjos. Trata-se, aqui, de uma tragédia política.
    Ao recusar as regras de um jogo que terminou num resultado desfavorável nas urnas, Aécio foi um dos principais responsáveis pela criação do atual  ambiente de intolerância política, cuja origem foi considerar uma derrota eleitoral -- contingencia de toda disputa democrática --  como um evento inaceitável. Ajudou a criar um vale tudo que dispensa regras e acordos que devem valer para todos, a começar pela noção que fundamenta toda democracia -- a compreensão necessária de que a soberania popular, expressa pela vontade das urnas, é o fundamento da vida em sociedade. Aécio reintroduziu no país a noção perniciosa da democracia de conveniência, aquela que só interessa quando permite a vitória dos amigos e aliados.

* Paulo Moreira Leite é diretor do 247 em Brasília. É também autor do livro "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA, IstoÉ e Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
 



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