terça-feira, 23 de maio de 2017

Importante é sonhar



O sonho é a grande matéria-prima do escritor. Não são fatos, como alguns supõem, e muito menos ideias os componentes fundamentais das suas obras. Os primeiros, nus e crus, sem qualquer acréscimo (se é que isso seja possível) são da competência dos jornalistas. Os segundos, são melhor desenvolvidos pelos filósofos. Mas os que lidam com ficção... Estes têm que sonhar, e muito.

Claro que, quando falo de sonhos, não me refiro àquele estado de inconsciência que temos durante o sono, àquela espécie de “descarga” do subconsciente (ou inconsciente, sei lá), que independe da nossa vontade. Refiro-me à fantasia, à imaginação, à criatividade desse artífice (ou artesão?) das palavras.

O escritor, então, não pode lidar com fatos?”, perguntaria alguém que goste das coisas explicadas tim-tim por tim-tim e tenha a mania de procurar pelo em ovo (há muitos, desse tipo, por aí). Claro que pode! E não somente pode, como deve. Mas apenas para dar caráter de verossimilhança aos seus sonhos.

Não lhe compete reproduzir acontecimentos exatamente como ocorreram. Afinal, não foi treinado, como o jornalista, para essa tarefa. É por isso que suas histórias são de ficção. Ou seja, nunca aconteceram (embora pudessem ter acontecido). E quanto mais realista for sua descrição, melhor. Só que, contos, novelas, romances e peças teatrais são “mentiras” consentidas e bem contadas (quando o são, óbvio). São frutos do “sonho”, da fantasia, da criatividade dos seus autores e não das circunstâncias ou do acaso.

O desafio do escritor é tornar sua narrativa a mais próxima possível do real. Por isso, não raro, invade, também, e sem nenhum escrúpulo, o campo que teoricamente seria restrito ao filósofo: o das ideias. Mas não as detalha e nem busca explicar sua origem e motivos.

E o fantástico, o fantasioso, o aparentemente inverossímil, estão interditos ao escritor? Claro que não! Esses fatores, aliás, integram o que denomino de “sonhos”. São, portanto, a matéria-prima por excelência de romancistas, contistas, novelistas e autores teatrais. Até porque, nada tem maior aparência de irreal do que a realidade, por paradoxal que isso possa parecer.

Acontecem coisas no cotidiano, em nosso dia a dia, ao nosso redor e mundo afora, que nem o mais imaginoso dos escritores, nem a mente mais fértil e criativa, conseguiria imaginar. Basta acompanhar os noticiários, cada vez mais fartos e detalhados, nesta era dita da “comunicação total”.

Convenhamos que, no que se refere a sonhos, quem sonha mais é o poeta. E reveste-os de metáforas, de signos, de símbolos de toda a sorte, compondo versos que pretende sejam imortais. Tanto que Fernando Pessoa constatou, com muita perspicácia, que os bons poemas de amor são exatamente os que se referem a amadas fictícias, meramente idealizadas ou “conceituais”. Via de regra, quando tentamos fazer poesia tendo por personagem a pessoa que de fato amamos, as palavras soam ocas, vazias, superficiais, inverossímeis.

É certo que poetas tidos e havidos como imortais (refiro-me, óbvio, àquela “imortalidade” que caracteriza Homero, Virgílio, Píndaro, Horácio e tantos outros. Ou seja, não a física, que é impossível, mas a das obras), não raro calcaram suas obras em fatos. Mas fantasiaram tanto esses acontecimentos, que chegamos a duvidar que tenham, mesmo, ocorrido.

A guerra de Troia, reportada por Homero na “Ilíada”, por exemplo, de fato aconteceu. Arqueólogos desenterraram essa cidade e há inúmeras provas da existência dela e de que foi destruída por um incêndio. Hoje, as pessoas bem informadas não têm porque duvidar dessa realidade.

Mas os herois descritos pelo poeta não foram tão heroicos assim. E nem manipulados, como meros marionetes, por deuses que eram, em seus comportamentos e paixões, mais humanos do que os homens. Essa imortal epopeia, portanto, é fruto do talento e, sobretudo, do sonho de Homero. E como sonhou!

Para resumir o que gastei tantas linhas para tentar explicar (e temo que tenha sido obscuro em minhas explicações), recorro (como sempre faço quando me vejo encalacrado para definir questões que envolvam literatura), ao meu constante guru, Jorge Luiz Borges, que escreveu a propósito: “Há escritores que pensam que, à força de variar os adjetivos, de dizer as metáforas eternas de um modo novo, podem obter algum escrito. Isto é falso. O importante é sonhar e ser sincero com o sonho quando se escreve. Ou seja, somente contar fábulas nas quais se acredita. Isto viria a ser a sinceridade literária e o único dever do escritor: ser fiel aos seus sonhos, não às meras e cambiantes circunstâncias”.

Mais claro do que isso é impossível! É certo que quem pretenda se aventurar neste complicado, pantanoso e não raro frustrante campo de atividade, tem que contar com sólida cultura. Precisa, sobretudo, saber manejar com perícia as ferramentas do seu ofício, ou seja, as palavras. Deve ser bastante informado, ter disposição para o trabalho, ser paciente e autodisciplinado e, sobretudo, observador. Mas nada disso terá valor se não souber fantasiar, elucubrar, dar asas à imaginação. Porquanto, para o escritor, o importante mesmo é sonhar! O resto?


Boa leitura!


O Editor.


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Um comentário:

  1. Alguns não gostam da expressão "ourives da palavra" para explicar a finura que deveria ser a escolha delas ao escrever.

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