sexta-feira, 5 de maio de 2017

O desejo de liberdade

* Por Carlos Castello Branco

Não há qualquer indício de que o Governo pretenda transformar o impulso de fraternidade e congraçamento, simbolizado na atitude permanente do grande morto deste agosto de 1976, em algo capaz de alterar a substância desse regime intolerante por índole sob o qual vivemos. Que o povo está do lado da conciliação e da paz e que reivindica o seu lugar ao sol ficou evidente na extraordinária concentração cívica, a qual, segundo a feliz expressão do Senador Paulo Brossard, devendo ser um lamento, se converteu em hino. As restrições, símbolo do regime, "parece que se condensavam no esquife de um perseguido e provocaram a explosão dos mais nobres sentimentos populares". O sentimento, todavia, não era de revolta, mas de pungente apelo à compreensão da grandeza da causa a que se dedicara sem ódio e sem ressentimento o fundador de Brasília. Havia na manifestação popular como que a transfusão da generosidade do proscrito e o apelo para que todos se irmanassem em torno da devolução da liberdade à Pátria. A uma amiga, com quem esteve em Brasília na véspera da sua última viagem, Juscelino Kubitschek, depois de lançar um olhar sobre a cidade, que sentia distanciar-se das suas origens, perguntou de repente: "Será que morrerei sem ver de novo a minha terra livre?"


O desejo da liberdade é a grande mensagem da manifestação de Brasília. Coincide ele, em essência, como o projeto político do Presidente Geisel, conduzido por entre as asperezas de um sistema ainda indomável no seu ímpeto reacionário. Os esforços do Presidente, que já nos devolveu parcelas importantes da liberdade de debate e de manifestação do pensamento, embora ainda a título precário, são testemunhados pela Nação mas operam por entre contradições, indicativas de que continua a viver o Governo entre pressões e contrapressões que o constrangem a uma pausada marcha, do que pretende didática, no caminho do que passou a chamar de aperfeiçoamento democrático, desde que ao sistema repugna ainda a palavra "democratização", mais ajustada a um regime de baixo grau de institucionalização e de menor grau de participação.


A longa demora para que o Governo se decidisse à homenagem elementar do luto oficial pela morte de um ex-Presidente da República revela que o General Ernesto Geisel se depara com dificuldades muito específicas para conjugar sua ação de Presidente com sua ação de chefe do processo revolucionário. É claro, como observou o Sr. Humberto Barreto, numa óbvia tradução do alívio presidencial pela decisão que pôde afinal ser tomada, que se tratava de uma decisão que merece elogios. Tanto mais elogiável quanto o tempo necessário a tomá-la revelou obstinação e decisão do Chefe do Governo na confrontação com os obstáculos que teve de examinar e estudar. Fato que por si só põe a nu a inviabilidade do congraçamento entre povo e Governo, propiciada pelos sentimentos que brotaram na Capital na última segunda-feira. Passado o espanto e vencida a cautela dos primeiros dias, voltaremos à radicalização, preconizada dentro do sistema como um duplo e dúbio dever de enfrentar a eleição e de confrontar os adversários do processo revolucionário.


No entanto, não se pode deixar de abrir lugar, nesta ordem de considerações, à ordem do dia do Ministro Sílvio Frota, que conclamou a juventude a repudiar "o preconceito, a intolerância, a violência, as ideologias fanatizadoras e as doutrinas anticristãs, para exaltar os valores da verdade, da justiça e da liberdade, para praticar, como nenhuma outra gente, a ampla e fraterna convivência humana, seguindo os ditames da consciência nacional". Magnífica e oportuna a inspiração do Ministro do Exército, como que a identificar, no episódio que precedeu de dois dias a comemoração do Dia do Soldado, aqueles ditames da consciência tão claramente demonstrados pelo povo no enterro de um dos seus heróis. Um herói pacífico, tolerante, fraterno, entre cujos erros jamais se contou, no Governo, o apelo à violência e, dentro ou fora do Governo, a demonstração da intolerância e do preconceito ou a adesão a qualquer ideologia fanatizadora.


Conjugam-se assim elementos positivos manifestação popular, definição política do Presidente e tomada de consciência do Chefe do Exército a confluírem para um objetivo, que no entanto ainda é uma meta longínqua no quadro das realidades nacionais. Ao General Geisel cumpre lembrar o exemplo de decisão e audácia do falecido Presidente Juscelino Kubitschek, que resolveu construir Brasília e a construiu em três anos, enfrentando ceticismo, oposição, quase revolta. Do trabalho à malícia, a tudo recorreu para vencer obstáculos e fazer o que lhe parecia ser obra exigida pela Nação e a ser cumprida por alguém que se dispusesse a agir na dimensão do estadista.



(Jornal do Brasil, 25 de agosto de 1976.)




* Jornalista, contista e romancista, membro da Academia Brasileira de Letras.

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