A nave dos inocentes
* Por Urda Alice Klueger
A estrada era de barro e de
pedra e de pó, mas tudo isso desaparecia numa baixa nuvem de bruma,
bem rasinha com o chão, a ponto de a gente se esquecer de pensar se
os velhos pneus da Kombi iriam resistir aos pedregulhos pontudos ou
não – na Kombi velha, que já deveria estar aposentada se cá não
fosse o mais legítimo terceiro mundo (e está cheinho de gente que
acha que o Sul é diferente, pitéu de primeiro mundo), um bando de
pequenos anjos como que agitavam suas tênues asas em forma de
sorrisos, e ao olhar para eles, quem é que ainda ia pensar em coisas
como pneus e pedregulhos?
Ela viajava adiante do carro
aonde eu estava, a Nave dos Inocentes, e apesar de ser mais de três
horas da madrugada e da estrada inóspita, cada pequeno anjo daqueles
sorria e abanava para nós, e a Kombi tinha as luzes internas acesas,
decerto para que nenhum anjinho chegasse a sentir medo, e eles eram
tantos, mas tantos, que não sei como cabiam todos ali, meninos e
meninas de 3, de 4, de 6 anos, talvez, anjinhos com carinhas
caboclas, com carinhas italianas, com carinhas alemãs, verdadeiros
anjinhos brasileiros flutuando na névoa dentro daquela Nave que os
levava em direção do Futuro, e sua alegria e farra eram coisas
impressionantes! No carro onde eu viajava alguém lembrou que se
tratavam de anjinhos que raras vezes andavam de carro, que decerto
dali vinha sua alegria – e nós abanávamos e eles nos abanavam e
riam, e aquela Nave dos Inocentes era como que uma coisa irreal a
flutuar na noite, como se fosse um sonho lindo que alguém estivesse
tendo, e na verdade, era um Sonho.
Quando eu contar qual era o
Sonho, diversos leitores não vão mais querer ler o resto da
crônica, mas, vá lá: eu seguia a Nave dos Inocentes, e nos
dirigíamos todos, num comboio que só aumentava, em direção de uma
das fazendas de terras arrasadas (há fotos para comprovar o
arrasamento das terras) que fazia parte do maior latifúndio do meu
Estado, para ocupá-lo. E, diante de nós, como numa irrealidade, a
Nave dos Inocentes navegava em direção ao Sonho e ao Futuro.
Andei quebrando um braço e
ele ainda não está bem bom; assim, sabia que apesar de estar
fazendo parte de uma equipe de apoio, pouco poderia ajudar a carregar
e fazer outras coisas para aquelas 500 famílias que seguiam para a
ocupação. Então pensei nos anjinhos que abanavam na velha Kombi –
e se, na hora em que a Kombi parasse, seus pais não estivessem a
postos? Quatro horas da manhã é um horário muito tardio para
meninos e meninas tão pequenos estarem naquela farra toda – havia
que se pensar no que aconteceria se algum sobrasse na Nave. E já que
estava sem muita força física, pensei em usar a força do coração,
e ficar de guarda para quando a Nave dos Inocentes parasse, amparar
junto ao peito algum anjinho que começasse a chorar. E foi o que
fiz.
Assim que chegamos à área
que estava sendo ocupada, tratei de sair do carro onde estava e ir
ver o que acontecia na Kombi. Como eu, um magote de adultos seguiu
para a mesma porta, e todos eram casais, e muitos tinham bebezinhos
ao colo, e quase todos eram feios, mal-vestidos, judiados pela vida,
envelhecidos prematuramente, sem nada de seu além daquelas crianças
que começaram a sair da Nave. E então eles gritavam coisas assim:
- Segura na mão do Luizinho,
e tu na mão do Antonio, não se soltem!
E cada casal arrebanhava
alguns anjinhos, às vezes três, às vezes quatro, e os colocavam
numa enfiada de mãos dadas, preciosos colares de crianças que eram
as suas jóias mais preciosas, as únicas jóias das suas vidas
sofridas. Em coisa de um instante a Nave dos Inocentes estava vazia –
não sobrara nenhum anjinho para eu acalentar junto ao coração. E
então eu soube que aquela gente jamais sairia dali a não ser por
algum acordo feito por um bom juiz; que não haveria soldado,
cachorro ou canhão que enfrentasse gente que tinha colares de tais
preciosidades, gente determinada a tudo para garantir as suas joias.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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