Um político de verdade
* Por
Fernando Henrique Cardoso
Em programa sobre
Ulysses Guimarães na GloboNews, o jornalista que mais sabe sobre ele, Jorge
Bastos Moreno, repetiu frase minha dizendo que o silêncio e o olhar de Ulysses
pesavam mais do que a pata de um elefante, tal era a liderança e o respeito de
que gozava. Ulysses representou, literalmente, o que é ser um político, um
líder. Tinha coragem. Há episódios que ilustram esta virtude. Seja o ousar
chamar os generais da trinca que mandava no Brasil de “os três patetas”, quando
fizeram por sua conta e gosto um reforma nas regras eleitorais, seja o haver desempenhado
o papel de anticandidato à Presidência, quando esta era decidida pelos votos
controlados pelo governo no Colégio Eleitoral, seja o ter enfrentado a polícia
baiana que, com cães, buscou impedi-lo de ingressar na sede do MDB em Salvador.
Recordo-me do Ulysses
anterior aos tempos de glória. Conheci-o (mas não ele a mim) quando de sua
candidatura frustrada ao governo de São Paulo, na década de 50, pelo PSD. Meu
pai era deputado federal pelo PTB-SP, aliado ao PSD. A seu pedido, para apoiar
Ulysses, inscrevi-me no diretório do PSD de Ponte Grande-Ponte Pequena. Segui-o
em suas peregrinações. Figura esbelta, desprovido de cabelos, os olhos verdes
penetrantes e o linguajar erudito causaram-me impressão marcante.
Ele de mim só tomou
conhecimento na década de 70. Lembro bem da visita que me fez com João Pacheco
Chaves na instituição em que então trabalhava, o Cebrap, núcleo de intelectuais
resistentes aos arbítrios do regime. Pediram-nos ajuda na preparação de um
programa para a campanha que se avizinhava, em 1974. Alguns se dispuseram a
cooperar. Feito o programa (matriz para vários posteriores) fomos a Brasília
apresentá-lo ao MDB. Aprovaram-nos. O programa, encapado de vermelho, serviu
para agitar a campanha eleitoral. Em outubro de 1974, o MDB ganhou
surpreendentemente as eleições legislativas. Virtude do programa? Não, de
Ulysses.
Ulysses não era um
político comum. Sabia que ganharia ou perderia pela voz e pelo gesto. Mas
queria construir um partido e este se faz com homens (bastam uns poucos, decididos,
dizia ele), mas só se mantém no poder democrático com ideias. Sabia que a
vitória sem rumo leva ao caos. Acreditava na política com compromissos, a serem
assumidos com responsabilidade.
Conto outro episódio.
Em 1978, Severo Gomes e eu fomos à casa do general Euler Bentes Monteiro. Em
outubro, o Colégio Eleitoral elegeria novamente o presidente pela via indireta.
Para nossa surpresa, o general se dispunha a aceitar uma candidatura pela
oposição. Severo enviou-me a São Paulo célere para que transmitisse a nova ao
doutor Ulysses. Ele ouviu-me, nada disse. Dias depois, chamou-me à sua casa da
Rua Campo Verde. Perguntou minha opinião. Disse-lhe que era favorável. Por
quê?, indagou. Porque é a primeira vez que vejo uma divisão de monta no regime
militar. Sozinhos, não os venceremos, estamos demorando demais em assumir a
candidatura Euler. Foi quando me olhou com a expressão pesada (que qualifiquei
de olhar de jacaré) e ficou em silêncio. Depois disse: “Uma decisão desta
responsabilidade tomo sozinho. Você sabe que São Paulo é civilista.” Para quem
não o conhecesse pareceria arrogância. Não era. Era senso de responsabilidade.
Sentia que perante a História quem seria julgado pela decisão e por suas
consequências seria ele, o chefe das oposições. Se há alguém na política
recente do Brasil que foi engrandecido pela História, e não apenas absolvido,
foi Ulysses Guimarães, um político de verdade.
O Globo, 07/10/2016
*
Sociólogo, político, e4x-presidente da República e membro da Academia
Brasileira de Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário