quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Ódio adorado em altares

* Por Mara Narciso

Vingança se guarda no freezer, ódio na lapidação. Muitos aprimoram seu veneno, frutificando seu ódio, matéria prima do mal. Adoradores do que sentem, purificam-no e o jogam ao vento, para que se alastre. Parecem felizes ao eliminar grupos inimigos. Da caixa de Pandora, mentes vingativas arrancam mil pragas. A psiquiatria entende tal virulência destrutiva, que esfarela o inimigo. Um mendigo atrapalha sua saída, você o esmaga com seu carro. Alguém o incomoda; você o derruba. Foi destratado? Atira, mas não basta um tiro. É preciso dezenas deles, com matança indiscriminada. Mata, esquarteja, queima, joga os pedaços por aí ou os dá aos cães.

O enteado incomoda, o pai receita um anestésico, a madrasta leva a criança para longe, e com a ajuda de vizinhos, mata e enterra em cova rasa. Para livrar-se do choro da enteada, a mulher a espanca, joga no chão, o pai a arrasta, sobe na cama, corta a rede de proteção, carimba sua camiseta com poeira, pega a criança e a joga do sexto andar. A crueldade exacerbada, tortura e violação de incapaz se intensificaram e quase toda a ação é vista pelas câmeras de segurança. Matar é um mega-espetáculo.

Mulher se satisfaz impondo sofrimento inominável: onze anos, braços para cima com punhos amarrados, língua cortada com alicate, unhas arrancadas, boca entupida com pano, obrigada a comer fezes de cachorro. A torturadora queria a menina para adoção. Já a juíza levou a criança para casa, para adaptação. A imagem do rosto da vítima inchado e roxo pelos socos ficou. O rapaz entrega a irmã de cinco anos para homens sob efeito de drogas. A mãe leva a filha de nove anos para traficantes. No final das sevícias e torturas, corpo queimado por cigarro e desaparecimento. Corpos somem em lagoas, malas, paredes, cisternas. O ódio encontra muitos caminhos.

Criança tortura criança, com transmissão ao vivo. Mãe sangra filha, na área genital, com alicate de cutícula, pai mata filha com veneno para não pagar pensão, ex-namorado mata ex-namorada de joelhos, a facadas, durante uma missa. Uma transeunte reclama de dois homens urinando na rua. Estes correm para bater em quem os censura; alguém entra no meio e tem sua cabeça esfacelada por chutes. Grupos de torcidas rivais se encontram e um desgarrado tem seu corpo liquidificado por barras de ferro.

O relacionamento se desfaz, o ódio é tratado com fermento. Antes de se concretizar, a vingança vira mensagens agressivas. Algo grandioso tem de acontecer para virar manchete. Mata 12 pessoas, entre elas a ex-mulher e seu filho, e se suicida, como num filme de ação.

A roleta russa de voar quase no zero, um dia acerta muitas cabeças. A economia de combustível mata 71 pessoas e comove o mundo. Os crimes são infindáveis, impossíveis de digerir. E quando um deles se dilui na memória, mais mil chegam em imagens de suicidas e mortos desfigurados, que ficam à visão de todos. Quem repassa se diverte. Matar é pequeno diante da ânsia por divulgação.

Os barris de pólvora estão por toda parte. Nenhum grupo escapa ao “festim diabólico”: direita, esquerda, ateu, religioso, velho, criança, de que raça for, praticam mortes, comemorando o ódio, sentimento hoje mais transmissível que o Vírus Ebola. É preciso importar martírios medievais. Morte por decapitação vira rito.

Desde 2013 o Brasil está rachado. Diante dos últimos fatos a opinião publica e as autoridades se mantêm divididas, mas o ódio permanece inteiro. Os mesmos que se julgam merecedores do céu, desaprovando a descriminalização do aborto em defesa da vida festejam a pena de morte imposta aos detentos. Expressões como campo de guerra, violência extrema e banho de sangue estão banalizadas. A degola de dezenas de pessoas, cada uma com pelo menos seis litros de sangue acabou roubando as palavras, ficando difícil de escrever/descrever.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



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