Ilustração: Stuart Marcelo
A menina do meio da mata
* Por
Roberto Beltrão
Meu nome é Rafael,
tenho 28 anos e sou engenheiro de software.Também sou apaixonado por natureza.
Gosto de caminhada em praia deserta ou perto de cachoeira dentro da mata, ar
limpo, banho de água clara, ouvir os passarinhos. Mas teve um passeio desses no
qual aconteceu uma situação muito bizarra. Para dizer a verdade, uma coisa bem
assustadora mesmo… Posso contar?
Olavo é meu colega de
escritório. Sempre saímos junto com a turma, depois do expediente. A figura
chama atenção: barriga esticando a estampa da camiseta, barba fechada e escura,
óculos de lente grossa e aro preto. E uma careca brilhosa, apesar dos trinta e
poucos anos. Olavão fala alto, coloca apelido, conta piada e solta uma risada
cheia de dentes. Mas quando está irritado, vira ogro, bate na mesa, xinga sem
medir palavra e abana dedo na cara de qualquer um. Diz que não foi pênalti o
único gol da partida na final do campeonato pra você ver! E a confusão se o
garçom do bar trouxer o troco errado pra menos?
Numa quinta, Olavo
chamou o pessoal para um fim de semana no sítio dos tios, lá pras bandas de
Vitória de Santo Antão. Sábado cedinho, partimos em dois carros. Que sítio
bacana! Casa grande com terraço, vários quartos, piscina, campinho pra jogar
bola e, em volta, uma mata fechada. Os donos já estavam preparando uma feijoada
para nós. Depois do almoço, a maioria se espichou nas redes do terraço. Só eu
fiquei instigando Olavo:
– Meu irmão, o que tem
depois daquela mata?
– Tem riozinho e morro
baixo. Dá uns vinte minutos a pé. Vale pra tirar umas fotos. Amanhã cedo, a
gente chama o pessoal pra ir.
– Por que amanhã?
Vamos agora, não estamos fazendo nada. Calça o tênis aí, velho!
Ele fez uma careta de
preguiça, mas acho que não quis me contrariar. Ninguém mais topou o passeio. A
tia do meu amigo nos viu sair e falou com voz séria:
– Vai entrar na mata
essa hora, meu filho? Cuidado, que já já vem o sereno. Fique atento, pois “ela”
mora por lá. Desde de você menino que conto essa história, lembra?
Não entendi a
advertência, nem Olavo explicou. Seguimos floresta adentro. As árvores altas
quase não deixavam entrar o resto da luz da tarde. Era aquele silêncio verde –
aqui e ali, um piado, um balançado de folhas. Andávamos calados, prestando
atenção no caminho estreito. Depois de uns dez minutos, veio um assovio agudo e
forte, assovio de gente, e não de bicho. Meu amigo parou e ficou espiando ao
redor, de boca aberta.
– Rafa, é melhor
voltar, que o negócio tá ficando esquisito.
– Mas só deve faltar
umas passadas, né não? Daqui tô vendo a clareira…
E apontei para onde a
floresta dava mais espaço ao sol, agora já bem amarelado e morno. Foi aí que
reparei, lá longe, uma pessoa no meio da mata. Parecia uma menina. Teria uns
dez anos? Olhos aboticados que nos vigiavam. Cabelo muito escuro e escorrido,
passando da cintura. Na mão, uma vara fininha. Ou era uma miragem feita pela
mistura de luz e sombra?
– Quem é aquela,
Olavão?
– Tô vendo ninguém
não, rapaz. Vamos cair fora, vai por mim… Oxe, e de onde foi que a gente veio?
Ele tirou os óculos,
limpou as lentes na camisa e colocou a armação de volta no rosto. Depois coçou
a careca e ficou com aquela expressão de quem está perdido. Prestei atenção na
agonia dele e esqueci por um instante da menina-miragem. Quando tentei vê-la de
novo, não estava mais em canto nenhum. Meu amigo soltou um palavrão e me puxou
pelo braço.
– Cara, vem ligeiro
que tá esquisito aqui. Não acho o caminho, mas ficar parado é pior.
O que poderia
acontecer com a gente? Vendo o suor escorrer da testa comprida de Olavo,
entendi que devia me preocupar. Do nada, voltaram os assovios. Agora eram mais
longos e vinham de longe, do meio das brenhas. E a saída não aparecia: nem
sinal do atalho que nos trouxe. Dava a impressão de que as folhas largas iam se
fechado na nossa frente enquanto tentávamos passar. Olavo parou de repente,
mais brabo que siri na lata. Falou palavrões ainda mais cabeludos, chutou os
montinhos de terra, deu murro nos galhos baixos.
– Calma, meu velho!
Ficar nervoso resolve o quê?
E adiantou falar? Aí
foi que berrou de raiva. Mas a gritaria parou quando alguma coisa o atingiu nas
costas. Só ouvi o “zap” e o “ai”. Uma chicotada? Depois veio outra, e mais
outra, e mais outra. Não dava pra enxergar o chicote – só via Olavão se
encolhendo e rodando que nem pião. Era mais certo correr ou tentar ajudar?
Antes que eu tomasse qualquer atitude, meu amigo caiu de joelhos e levantou as
mãos.
– Para, pelo amor de
Deus, para! Me desculpe, “cumade”. Juro que não queria faltar com o respeito.
Me perdoe, que a gente vai embora!
Os “zaps” e os
assovios pararam. Escapulimos às carreiras. Tive a impressão de que os galhos
se curvavam apontando a rota de saída. Retornamos ao sítio já à noite.
Cansados, sujos, arranhados. Olavo apenas rosnou para avisar aos tios que a
turma iria voltar para o Recife naquela hora mesmo. Quem era doido de
questionar? Na despedida, a tia torceu o nariz, como quem fala “eu te disse”.
Achei melhor não perguntar nada e preservar uma amizade. Na segunda-feira, os
colegas me chamaram num canto. Desconversei.
– O que aconteceu? A
gente se perdeu na trilha, pessoal. Aí Olavo ficou nervoso, só isso. Sabe como
ele é, né?
Esta é uma narrativa
de ficção baseada em depoimentos reais.
*
Jornalista, pesquisador e escritor.
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