segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Biscoito


* Por Celso Chagas


Para começar que agora, aqui dentro do metrô, esperando chegar em Botafogo, acho que a escolha que ele fez para o biscoito recheado foi uma merda. Devemos considerar as opiniões, claro, mas gente como eu se preocupa com o sabor dos biscoitos sim. Por exemplo, sabor limão é interessante aos olhos, à boca não.

Gosto de viajar de cabeça baixa. Ocorre uma sonolência diferente daquela que comumente toma as pessoas quando em uma condução. A boca aberta, cabeça caindo para o lado ou em cima do passageiro do lado, é sempre isso. Mas eu não: abaixo minha cabeça de maneira singular. Pequenos sonhos ensaiam acontecer.

Dividir um teto não é simples, principalmente se há divergência por conta de sabor de biscoito. Nunca me incomodei com a cortina do banheiro fora do lugar, com a água filtrada em temperatura ambiente, com nada dessas coisas. Pago minha parte das contas em dia, molho as plantas dos fundos, tudo certo. Mas não consigo esquecer aquele abuso. Nosso apartamento dispõe de uma sala grande, mobiliada com móveis coloridos e antigos, art-nouveau, diz ele. O quarto é menor, mas aconchegante e escuro, com cortinas que impedem a entrada de qualquer tipo de luminosidade. Mesinhas de cabeceira que foram de minha avó apóiam um relógio, alguns livros e dois abajures. É claro que nas manhãs de domingo abrimos toda a casa, para entrar o domingo. Minhas
bijuterias e roupas ocupam o que seria o quarto de empregados, que fiz de closet.

Gostaria de ter mais sapatos do que tenho. Sempre olhei para eles com carinho especial, para os dos outros também. É bem verdade que só arrisco as mesmas cores, mas isso não chega a ser uma dúvida em mim. Dúvida é, no fundo, muito mais.

Casei-me por amor, por acreditar no mundo cor-de-rosa que imaginamos quando a festa de comemoração acontece, por acreditar nas letras de MPB que sempre me ajudaram a montar meu imaginário de amor. Cresci, estudei, dei e tudo o mais. Muito sensível eu. Assim vivia no Rio de Janeiro, esperando meu par surgir repleto de charme, de idéias interessantes, bonito, viril, e se possível, ligado em horóscopo e essas coisas. E ele surgiu.

Na fila do metrô. Eu ali esperando minha vez, pensando em alguma bobagem, em algum caso mal-resolvido de alguma amiga mal-resolvida, quando uma voz me pergunta a mais simples das perguntas: "A fila é aqui né?". Disse que sim e me virei de volta, mas gostei do que vi. Moreno, de estatura mediana, um pouco exagerado na magreza, mas tudo bem. Achei que não daria em nada, óbvio, e quando joguei aquele olhar que sabemos muito bem jogar, meio de soslaio, ele engata uma verborragia que depois vim a conhecer melhor em bares, motéis e por fim na Igreja. Já estava, como dizem, na dele. À época com vinte e cinco anos, hoje com quarenta e oito.

Não sei o que mudou. Se as viagens para o exterior (sobretudo América Latina, por causa dele), se as intermináveis conversas regadas a vinho tinto, não sei. Sei que tudo o que esperava estava ali e acho que ainda está. Quando surgiu a irritação com o sabor do biscoito? Também não sei, me sinto na ridicularidade de questionar a opção de sabor de um biscoito. Por outro lado não abandono por nada essa idéia.

Filhos não, a favor da liberdade sempre. Quer dizer, até certo ponto, porque afinal sempre quis ter filhos, mas a conversa sobre Sartre e Pirandello me calou. Também não tenho nada contra a bendita art-nouveau, mas passei a estupidamente ignorar o pouco que sabia sobre esses assuntos para dedicar meus ouvidos aos conhecimentos intrincados dele. Dedicação besta assim nunca se viu, nem com a puta que me pariu. Desculpe-me você que está aí do outro lado, em outro vagão. Ou não desculpe não, afinal quem está atravessando esse mar de sal sou eu, em mim mesma. E nunca aprendi a nadar, apesar das praias na juventude.

Aqui no metrô tudo é meio conveniente, o ar-condicionado e os bilhetes duplos. Já não consigo ficar em minha posição preferida, levanto a cabeça cheia de pensamentos e sem sonhos. Estranho como se conhece e desconhece uma pessoa. Estranho como nessa idade me parece que os sonhos são paras as crianças ou os pré-adolescentes. Eu achei que minha vida e trajetória estavam escritas eternamente em algum lugar também eterno, no entanto não. Sinto um pouco de vergonha de mim mesma. Se pelo menos filhos tivesse, teria alguma preocupação um pouco maior do que o biscoito que tanto me incomoda.

Mas penso assim: tudo bem, já não somos os mesmos, tudo separado, inclusive os livros (os meus de professora que nunca deu aula, e os dele, de intelectual sem alma), os discos e as fotos. Mas precisava mexer no biscoito que sempre me esperou na gaveta direita do armário branco da cozinha? Parece-me que não.

Talvez eu estivesse depositando no biscoito a esperança de toda uma vida, o que é bem provável, mas nego-me a acreditar que fui tão burra assim. Que vergonha. Engrosso e endosso o coro dos machos mais burros ainda, mas que acham lugar com um exemplo como o meu. Por que deixar de fazer, de pensar, de não fazer...

Chegou minha estação. Botafogo, quatro da tarde, aqui no Rio, eu sozinha na saída do metrô. Em dúvida, em penumbra. Ele não sei. Quarenta e oito anos, e vinte biscoitos em média de baunilha. E um aperto e um alívio sem fim no peito.

·        Jornalista


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