A janela
* Por
Marcelo Sguassábia
São sortidos e
peculiares os flagrantes vistos daqui, deste camuflado e geograficamente
estratégico terceiro andar. Quase sete da manhã e nada nem ninguém deterá que a
cópula bissemanal no apartamento à frente se dê de forma clínica e burocrática,
com a resignação de quem paga uma promessa. A silhueta dos dois denuncia a
posição de missionário. Três minutos, quando muito, e resolvido. Ao banheiro
para a ducha, à mesa para o café, ao beijo na testa das crianças e pronto –
estão ambos devolvidos à faina esmagadora das repartições e a seus amantes
fixos e eventuais, com quem exercitam prazerosamente todas as variações do
bem-bom.
***
O que vem na sequência
é não menos previsível: “Pizzicato Polka” e o prelúdio de “Tristão e Isolda”.
Até hoje custa-me entender como um mesmo gosto acolhe peças esteticamente tão
inconciliáveis. E a música surge de ponto impreciso, não dá para identificar se
o epicentro é na rua ou na cobertura do prédio. Não é impossível que brote
espontaneamente dos arredores, composição do asfalto em parceria com os
semáforos, trilha sonora por excelência daquele trecho de city.
***
Nada de anormal ou
suspeito lá embaixo, na lida dos homens-formigas com suas pastas de documentos
e protocolos. Ainda assim me ocorreu fazer um instantâneo deste nada para a
posteridade, retrato comum de momento neutro, tão desinteressante quanto esta
pastilha solta no parapeito da janela - indício seguro que há anos a faxineira
não passa um paninho com Veja Multiuso por aqui. Se passasse ela despencaria e
talvez caísse no capô do fusca amarelo-gema do Nelson, porteiro do prédio. Mas
isso também não traria consequência que alterasse esse arrastão de coisa
alguma, nem seria o caso de acionar o condomínio para saldar a conta do
Martelinho de Ouro.
***
A TV ligada no canal
do senado alça o demônio a anjo, arquivando a montanha de processos que pesa
sobre sua figura repulsiva e recendendo a putaria. Velhacão experimentado, tão
ou mais hipócrita que o casal do prédio em frente na posição de missionário.
Violo a sepultura das velhas aulas de Educação Moral e Cívica para exigir
reparação e ressarcimento de tempo perdido, ao som de um carro de bombeiros que
dobra a esquina com a sirene a toda. Pode ser um trote. Este país é um trote.
Porém o sujeito que liga para os bombeiros alardeando fogo falso não é mais
criminoso que esses engravatados que ganham por fora para que o meu dinheiro
seja usado na compra de mais um naco do Maranhão ou para pagar o salário do
Secreta (parte dele, bem entendido).
***
Se é possível em tese
viajar para o futuro, como comprovou Einstein, em algum ponto do espaço o filho
do casal que copulou agorinha já é longínquo e esquecido tataravô de alguém.
Este prédio já ruiu, com pastilha solta e tudo, há centenas de anos. O impune
senado da república terá sido condenado necessariamente ao pó, com seus
cadáveres de esquerda, direita e centro formando camadas fósseis, que hão de
jorrar petróleo. Mas, para que jorre caudaloso, já avisam antecipadamente: só
com um agradinho de 10%. E em espécie.
* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs:
WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e
WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Êta mundo bom, tem janela, tem cópula, tem beijo, tem senado e Marcelo para nos fazer pensar.
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