quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Por onde anda a “purrinha”?

* Por Mara Narciso


No clube tinha futebol, sinuca, piscina, cerveja e purrinha (porrinha, para os puros). O fim da manhã era no salão, em volta da mesa, na qual quatro ou cinco homens pais de meninos vinham jogar purrinha. Os meninos menores passavam por debaixo da mesa, e os maiores, curiosos, viam seus pais chegarem da piscina ou sauna, pós-futebol, cabelos molhados, calção, escolher a mesma cadeira, pedir uma rodada de cerveja, e começar o jogo. Os filhos mais velhos entendiam a lógica da brincadeira, que em instantes elevava os níveis de adrenalina e álcool, ainda que o prêmio ou pena fossem pequenos.

Corria dinheiro, mas as apostas não iam além de rodadas de cerveja estupidamente gelada, dois pelos, servida sem colarinho em copo americano, e três palitinhos nas mãos. Podia ser palito de dente, mas geralmente eram palitos de fósforo quebrados ao meio. Os homens estavam animados. Todos fumavam, e à medida que iam bebendo, a euforia aumentava, e mais leves ficavam.

A meninada ficava por ali, depois de ter explorado todo o clube, partes secas e molhadas. Sobre a mesa as mãos dos homens com os palitinhos e por perto as crianças “aporrinhando”. Já estavam lotados de sorvete, refrigerante, salgados, espetinhos e depois do jogo iriam almoçar em casa e quem sabe, ir à matinê das quatro. Os homens ficavam cada vez mais exaltados com a emoção de perder ou ganhar. Não tinha briga. A possibilidade de adivinhação, em parte, era baseada em cálculo matemático (rasteiro, pode-se dizer), e o clímax do passeio não os deixava lembrar-se das esposas enfastiadas ou dos filhos cansados do lugar.

Naquele tempo não se via mulheres jogando purrinha. Ficavam na varanda olhando as crianças e bebendo em separado. Num grupo de quatro homens, por exemplo, cada um escolhia quantos dos três palitos ou nenhum iriam apresentar para o jogo. O palpite poderia ir de zero a 12. Ganhava a rodada aquele que adivinhasse o total de palitos de todas as mãos, sobre a mesa, enquanto a outra costumava ficar atrás do corpo com o restante. Combinando antes, podiam evitar “lona” ou zero palito, na primeira rodada. Assim que cada um dos jogadores desse seu palpite, abria-se as mãos, contavam-se os palitos e quem tivesse acertado, tirava um deles, deixando-o sobre a mesa. Ganha o jogo quem primeiro ficar sem palitos. Não se pode repetir um número que já tenha sido falado naquela rodada, assim, não há empate.

O mundo masculino ficava parcialmente exposto para a criançada. Alguns mandavam os filhos passear lá fora. Costumavam obedecer. O não estava na boca dos pais, assim como o sim. Altos no tamanho, força e autoridade, envoltos em cigarro, álcool e euforia, levantam-se de vez em quando para fazer valer a sua opinião. Ficavam gigantes quando venciam uma rodada difícil. Sentavam-se, na beirada da cadeira, punho cerrado, apresentavam novamente a sua arma, bebiam outro gole e tudo recomeçava. A tensão pulava da expectativa, no momento imediato que antecedia o abrir das mãos, até a exaltação com o grito de ganhei, ou a aparência murcha de quem tinha perdido. Cada rodada passava num segundo e assim a vibração e gritos discretos se repetiam após cada acerto. Ou erro. O prêmio do vencedor era não pagar a cerveja, enquanto o perdedor ia ao balcão buscar mais algumas para molhar a palavra. Intermináveis contendas.

Segundo a Wikipédia, a palavra “porrinha” vem de “morra”, um jogo praticado pelos romanos, contando os dedos da mão. E entre as lendas, diz-se que confiança mesmo é jogar purrinha no escuro, ou por telefone.

Há quem jogue bem a purrinha, existindo campeões e incontáveis testemunhas. Raramente paga uma cerveja, e ganha quase tudo que bebe, apelando para seus conhecimentos de psicologia, raciocínio lógico, noções de estatística, lei das probabilidades, matemática aplicada e sorte. Duas coisas boas, o convívio e o leve efeito alcoólico. Havia um carro e uma família para levar para casa. Voltaremos!

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



Um comentário:

  1. Interessante saber mais sobre esse jogo - do qual só conhecia o nome... Abraços, Mara.

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