segunda-feira, 11 de julho de 2016

Véus do martírio

* Por Daniel Santos 


Às tantas, uma senhora entrou no ônibus esbaforida, suarenta, com duas sacolas de supermercado e pernas inchadas de varizes, mas não foi por educação ou mera formalidade de cavalheiro que lhe cedi o assento.

Não. De pé no corredor, o corpo vacilante conforme o coletivo avançava, seus olhos transmitiam desamparo. Mas percebi que havia certo receio em revelar fragilidade neste mundo que proclama a eficiência.

Por isso, talvez, aprumou-se o quanto pôde como se quisesse convencer a todos da própria autonomia. Só a mim não convenceu. Percebi sua agonia e, por solidariedade, levantei-me e lhe apontei o lugar vago.

Antes inseguro, seu olhar parecia agora intrigado. Vi que não entendera meu gesto ou se fizera de desentendida. Afinal, em vez de lhe dar alívio, a gentileza denunciava o que ela queria esconder: a fadiga.

Agradeceu-me com certa soberba e um quê de cumplicidade, como a dizer “isso fica entre nós dois”. E, assim, prosseguiu viagem, o suor descendo como véus de um martírio que a constrangia e a sujeitava.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.









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