segunda-feira, 11 de julho de 2016

Em Orlando, Virgínia Woolf desafia convenções de cronologia e gênero

* Por Luciano Trigo


Nenhum ser humano, desde que o mundo começou, parecia mais encantador. Sua forma combinava ao mesmo tempo a força de um homem e a graça de uma mulher”. Assim é descrito o personagem-título do romance “Orlando”, de Virginia Woolf, agora relançado em tradução de Jorio Dauster, com introdução de Sandra M.Gilbert e posfácio de Paulo Mendes Campos (Penguin/Companhia, 344 pgs. R$32). Embora o encantador Orlando tenha 16 anos no começo da história e pouco mais de 30 no final, sua vida atravessa quatro séculos, do reinado de Elizabeth I às primeiras décadas do século 20, e no meio do caminho o protagonista efetivamente muda de sexo, sem que isso represente um grande trauma. Esses dois elementos fantásticos – envolvendo rupturas com as convenções de cronologia e gênero – são integrados na narrativa com tanta graça e de forma tão natural pela escritora que  temos a sensação de que se trata de uma biografia verdadeira, nos moldes das vidas de outros personagens históricos.

E não deixa de ser verdadeira, no que interessa: “Orlando” pode ser lido como uma longa carta de amor, endereçada por Virginia à amiga (e, por algum tempo, amante) Vita Sackville-West, aristocrata que conciliava um casamento “normal” com visitas a salões sáficos, transitando naturalmente pelos dois mundos. Engana-se, nesse sentido, quem acredita que havia algo de particularmente escandaloso no romance (lançado em 1928): ao menos no círculo social da escritora (o famoso Grupo de Bloomsbury, do qual faziam parte intelectuais e artistas como o economista John Maynard Keynes, o escritor Lytton Strachey, o crítico Roger Fry e a pintora Vanessa Bell), o homossexualismo e o bissexualismo eram práticas correntes. A própria Virginia, casada com Leonard Woolf, respeitado mas enrustido editor da Hogarth Press, era assumidamente apaixonada por Vita, por sua vez casada com o bissexual Harold Nicolson (a união de Vita e Harold é tema de um livro fascinante, “Retrato de um casamento”, de Nigel Nicolson, filho do casal).

Esses detalhes de alcova não são irrelevantes, já que, contrária à ideia de uma heterossexualidade compulsória, determinada pela anatomia, Virginia Woolf abordou direta ou indiretamente o tema da androginia em vários romances, promovendo um questionamento radical dos papéis sociais historicamente atribuídos às mulheres. Em alguma medida, “Os anos”, “Entre os atos” e “As ondas” também desafiam essas convenções, por meio do exame das dinâmicas familiares de seus personagens. Por outro lado, mais que pelos ingredientes de fantasia histórica, “Orlando” se distingue das outras obras de Virginia Woolf pela leveza e jovialidade com que aborda questões profundas – leveza e jovialidade ainda mais notáveis quando se sabe que a escritora teve uma vida atormentada, marcada por traumas na adolescência e por colapsos nervosos recorrentes em toda a vida adulta – que culminaram com seu suicídio por afogamento, em 1941.


* Luciano Trigo é escritor, jornalista, tradutor e editor de livros.

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