sábado, 2 de julho de 2016

Uma poesia ligada aos caboclos 


* Por Luiz Carlos Monteiro


A maioria dos poetas começa fazendo versos sobre ausência e solidão a partir de formas clássicas. Outra parte inicia-se logo na antilírica, urbanizada, praticando uma acrobacia espacial no rumo do ambíguo e do desconhecido. E mais outros ainda recorrem ao verso livre, talvez por permitir, dentro do que não sabem ou não podem dizer, a ousadia de intentar dar expressão ao que não traz sentido poético e que assim não se deve registrar. O poeta recifense Carlos Newton Júnior em seu quinto livro de poesia, De mãos dadas aos caboclos, mostra porque guarda semelhanças e diferenças em relação aos grupos de líricos, urbanos e diluidores. O primeiro salto qualitativo que ele empreende é a habilidade, que atualmente faz muita falta, no manejo de sonetos, quadras, redondilhas e outras estruturas do metro clássico, aproximadas à poesia popular de épocas diversas. Depois, reúne ao lirismo existencial e neo-romântico, exacerbado às vezes, um desempenho que abarca a poesia do sertão nordestino sem aquelas tentativas forçadas a que muita gente se arrisca, tendo lá nascido ou não.

Já  no primeiro livro, em 1993, O homem só e outros poemas, além do lirismo incorpora os “Poemas armoriais”, antecipando uma linhagem sertaneja para sua poesia. O que terá continuidade em 1999 com o longo e fabuloso Canudos: Poema dos quinhentos, não descoberto ainda pelos poetas, críticos, professores, historiadores e gente interessada no passado recente de fanatismo, violência e opressão que assolou o Brasil e a região nordestina em particular. Carlos Newton reaquece aqui sua inclinação armorial, trazendo a lembrança dos cangaceiros Lampião e Corisco, dos fanáticos Antônio Conselheiro e João Abade, centrados na terra sertaneja e suas furnas na caatinga, seus serrotes estratégicos e sua gente bravia, humilde e injustiçada.

Um dos poemas dedicados a Conselheiro, como parte de “Visões”, descarna o seu Medo e destemor do mundo, sugerindo mais que expondo a dimensão beatífica e algo premonitória de sua causa a abrigar ao redor do Arraial toda uma gente itinerante e desvalida, repudiada e vilipendiada até o mais baixo da condição humana, sem solução terrena ou cósmica possível: “Eu não temo a medida, as proporções/ que hoje alcança meu sonho gigantesco./ Eu não temo a madeira e seus entalhes,/ pois meu pulso é severo e principesco.// (...) Eu não temo soldados, sentinelas/ do Anti-Cristo, seus padres, seus espelhos./ Eu não temo a fraqueza dos governos/ - só meus medos internos, os meus Medos”.

Uma guinada vai se processar nos dois livros posteriores, Nóstos e Poeta em Londres. Em Nóstos retrabalha certa poesia homérica e um ludismo concentrado nos bichos, inclusive no homem, na esteira de um Sergio Campos, poeta carioca precocemente desaparecido. O mote para o segundo foi uma viagem de vinte dias a Londres em 2002, a convite de um irmão, visitando museus e galerias, espalhando o fantasma da solidão pelas esquinas de uma cidade fria e estranha, de tradição poética inconteste e poetas famosos no mundo todo. Carlos Newton desenvolve, por exemplo, uma visada crua e metapoética para o tempo e o poema que a ele se entranha, para as vacuidades do poema e o tempo que dele se desprende.

Os poemas constantes em De mãos dadas aos caboclos surpreendem o leitor pelo ajuste de contas que o poeta enceta com a poesia, a vida literária, as posições estéticas assumidas e, como não poderia deixar de ser, consigo mesmo. Não é possível deixar de se identificar o lastro de autores que reverencia e reconhece tributariamente. Aqui reaparecem Homero, Dante, Camões, Rimbaud, Rilke e Maiakovski. Entre os brasileiros, Ariano Suassuna, João Cabral, Augusto dos Anjos e Carlos Pena Filho. Em “Sagração”, bloco de trinta poemas, delimita seu espaço como poeta, ao expor suas numerosas dúvidas e estabelecer umas poucas certezas. Na outra subdivisão, “De mãos dadas aos caboclos”, sem afastar-se um só passo da poesia que imaginou para si, retoma o lirismo antigo, a vertente armorial e perfaz um roteiro telúrico que já vinha se aclarando nos outros trabalhos, como nessa estrofe que encerra o livro: “De mãos dadas aos Caboclos,/ numa roda que é de poucos,/ vou compondo, submerso,/ um continente de versos”.

Reafirma-se nos poemas de Carlos Newton um feitio e uma práxis de poeta que se solidariza àqueles que sempre foram logrados e aviltados, enganados e sumariamente afastados de parte do processo político e econômico da sociedade brasileira. Os hábitos simples, a vida despojada, o respeito à natureza e o temor de um Ser supremo que se incrustam nos dias daquela gente. Os animais que tanto auxiliam o homem na sua luta inglória quanto servem de repasto à sua fome. Ao lado disso, o culto de uma terra que fascina pela beleza de seus sóis e noites de lua, suas árvores místicas de troncos seculares, seus riachos de águas raras rodeados por barrancos, areia fina e seixos rolados.

Nem todo escritor se sai bem na configuração sugestiva dos temas sertanejos. O que não implica em falta de destreza poética, apenas é exigido um sentimento de maior alcance e amplitude, uma ligação visceral que passa a envolver o homem e a terra, como no caso do desenraizado Euclides da Cunha. Dividido entre o Sertão e a vida na cidade grande, o poeta faz-se um ser em exílio permanente, isto, porém, em nada diminuindo a força de sua mensagem. Não cede inteiramente aos outros conteúdos entrevistos e praticados em versos. Por outro lado, não se afasta também de um projeto estético maior do que a delimitação idiossincrática de uma temática única.


* Poeta, crítico literário e ensaísta. Tem sete livros publicados, entre eles O impossível dizer e outros poemas (2005) e Musa fragmentada – a poética de Carlos Pena Filho (2009).


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