sábado, 2 de julho de 2016

O reencontro

* Por Geraldo França de Lima

Foi pouco antes da Missa do Galo, enquanto os povos se aglomeravam no Largo da Matriz, que Gutemberg Roldão viu-a, pela primeira vez: - sentiu, num estremecimento estranho, a sensação de um reencontro: já se conheciam sem saber de onde: dois seres exaustos de recíproca procura ansiosa, que, afinal, se reachavam num ponto predestinado: - neste mundo varado, estradado e bifurcado, o reencontro se dava na pequena Serras Azuis!

A praça, profusamente iluminada: lâmpadas se acumulavam em cada canto. De maneira que Gutemberg pôde vê-la bem claramente vista: sua beleza serena e assentada marcava-lhe a vida para todo o sempre. Viu-a como um todo que impressiona e fixa definitivamente um momento: nem lhe reparou nos detalhes: - a tez clara, os cabelos negros e aqueles grandes olhos verdes. E tudo assim, de supetão, tão rápido. Teve, porém, tempo para senti-la também afetada, pela recíproca daquele olhar. O modo especial com que ela disfarçadamente o fitou pela quina dos olhos, rasgou-lhe uma estrada de ventura, como se o mundo parasse naquele instante.

Quando o Efigeninho e o Jovem Telegrafista chegaram, Gutemberg contou-lhes aquilo que considerava uma estranha visão.

- Uma mulher bonita é sempre assim. Gente de fora, chegaram hoje, pernoitam e seguem amanhã - disse o Efigeninho, rindo-se.

- Quem será? - perguntava Gutemberg, hipnotizado.

Ninguém tinha idéia. Iam conversar mais um pouco, andando, fazendo hora para a ceia.

- Se vocês não se importam, poderíamos dar umas voltinhas pelas ruas: talvez a víssemos - sugeriu Gutemberg.

Procuraram-na. Pela praça. Pelos hotéis. Pelo Largo da Escrava. Nem sombra.

- Que jeito tem ela? - perguntou o Efigeninho.

- O da beleza da inesquecibilidade, o da definitibilidade - disse Gutemberg, aereamente.

- Assim, você não ajuda - respondeu Efigeninho. - Dê-nos os traços materiais, reais e acessórios: e com quem estava?

- Saía sozinha da Matriz: nossos olhares se chocaram.

- Não faço a menor idéia - disse o Jovem Telegrafista.

- Não é daqui.

Gutemberg não ouvia.

- Foi-se embora - murmurou num lamento...

- Então vamos também. Natal é pretexto para festas, bebedeiras, vendas e comedorias - disse o Efigeninho.

Gutemberg acompanhou-os, silencioso, concentrado, alheio. Jovem Telegrafista compreendeu que gostaria de prolongar a busca.

- Vamos procurá-la mais um pouco - disse.

- Se vocês não se incomodam, talvez esteja passeando: a noite está toda acordada.

Procuraram-na: em vão. Quando perceberam, estavam na porta do Austríaco: pensaram em entrar para um abraço de festas, mas ouviram vozes desconhecidas e desistiram.

O Efigeninho estava entusiasmado: naquela noite fazia estréia, no bordel do Zário, soberba mulher encomendada de fora, que ele vira na rua e cobiçava.

- O pecado é a grande felicidade do homem, é a afirmação. A virtude, a treva - dizia e dirigindo-se a Gutemberg, sacudiu-o pelo braço: - acorda, homem!

Gutemberg acordou e falou com convicção: - Tenho certeza de que ela é de Serras Azuis.

- Então, tranqüilize-se - disse o Jovem Telegrafista. - Em Serras Azuis nada se esconde, tudo se descobre.

Chegavam à Confeitaria Cruzeiro: o mulherio já a apinhava: a orquestra do Zé Pê gemia um tango: a fumaça dos cigarros enegrecia o teto da esteira, abafando o ambiente. A mulher que devia estrear vinha chegando, já sob a mira do Vidigal, cidadão circunspecto, provedor da irmandade religiosa mais importante da paróquia.

O Rau-Ró-Ró, fiscal das mulheres do Zário, chamou o Efigeninho a um canto: naquela noite não seria possível, porque depois do Vidigal, a mulher seria do Carrijinho, o promotor.

- Do Carrijinho? Pois então desisto para sempre.

O ambiente da Cruzeiro estava carregado.

- Ali, no Peto - sugeriu Gutemberg - come-se bem e se está mais arejado.

Foram para o Peto. Jovem Telegrafista e Efigeninho comeram e beberam muito. Gutemberg continuava impressionado, abstrato.

- Tenho certeza: o jeito dela não me engana: - é de Serras Azuis.

- Você está assombrado, calma! - disse o Jovem Telegrafista.

A madrugada ia alta: Efigeninho mal se mantinha em pé. Saíram. Efigeninho tentou cantarolar a grande valsa local:

"Serras Azuis
dos meus sonhos..."

Despediram-se: cada qual tomou o seu rumo. Gutemberg voltou ao Largo da Matriz na tentativa de encontrar qualquer coisa daquele olhar. Depois recolheu-se. Na manhã seguinte levantou-se pensando nela. Conversou com a Tia Simíramis. O dia abafava; o sol queimava. À tardinha saiu: encontrou-se com Efigeninho no Largo da Escrava: alguns meninos retardatários pediam festas. Efigeninho bocejava com sono e ressaca. De repente, Gutemberg assustou-se, agarrou-lhe o braço e sacudiu:

- Espia, ali: - é ela... Olha... Ali! - disse, apontando discretamente.

Efigeninho tornou-se sério, espantado:

- Você não exagera? É Lígia...

- Que importa? Que Lígia? - disse Gutemberg, já encaminhando-se para onde estava ela, com Rosemunde.

Efigeninho deteve-o:

- Você não a conhece?

- Não. Quero conhecê-la agora. Vamos. Você está empacado...

- É Lígia...

- Que Lígia? Você me enerva.

... - das Graças.

- Ora, que graças? - dizia Gutemberg, impaciente, ansioso.

Efigeninho pôs a mão em seu ombro, segurando-o, e, cheio de pesar:

- Escute, homem, é Lígia das Graças O'Neil de Paiva...

Gutemberg estremeceu: tornou-se lívido, desapontado como se lhe fugisse, de repente, a luz.

Efigeninho continuou, solidário, sinceramente penalizado:

- É a filha do Paiva, a que se formou. Tem estado no colégio, e depois dos estudos, vive mais para o Cachimbo. Vem pouco à cidade. Você nunca a tinha visto antes? Não é possível!

As emoções, a circulação e o entusiasmo de Gutemberg estavam paralisados e se sentia destruído, esfriado. Tendo de aceitar a verdade dos fatos, só pôde murmurar, à guisa de uma autoconsolação:

- Em todo o caso, eu tinha razão: é de Serras Azuis. É uma pena, é uma lástima.

- Então, ela te fez tal impressão? Não se pensa nisto nem se toca mais no assunto. É Paiva, Gute, é Paiva do Conflito - dizia Efigeninho com um começo de preocupação.

- Me fez uma impressão absoluta: qualquer coisa diferente.

- Lembre-se - insistiu Efigeninho - não pode passar de um incidente.

- Incidente? - perguntou Gutemberg arrasado.

Calados e quietos deram uns passos: o calor aumentava: a noite carregava-se.

- Vai cair um pé-d'água - disse Gutemberg arrasado.

- Parece.

- Estou cansado, Efigeninho, vou para casa. E você?

- Ainda fico por aqui.

Gutemberg tocou para a botica do Faria: deu um dedo de prosa e de repente perguntou:

- Faria, o Conflito foi uma sangueira terrível, não?

- Sim. É o que todos dizem. Por que você me pergunta?

- Por nada. Me veio à mente.

Começava a chover: Gutemberg apressou-se para casa. No seu quarto pensava naquele olhar cheio de beleza, interessado de Lígia das Graças. Estava, realmente, hipnotizado, fascinado, encantado.

Adormeceu profundamente: sonhou com ela. Na manhã seguinte esforçava-se para reconstituir o sonho. Só se lembrava nitidamente de ter-lhe dito:

- Lígia das Graças, tu me desgraças...

(Serras azuis, 1961.)


* Romancista e professor, membro da Academia Brasileira de Letras.

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