segunda-feira, 4 de julho de 2016

Três haustos

* Por Daniel Santos

A mesma cama ainda. Foi nela que lançou seu grito primal entre as pernas da mãe e as mãos da parteira. Depois, aquela respiração intensa de quem pretendia vingar, uma respiração forte, quase feroz, de rebento.

Pois a tal cama, ganhou-a como presente de casamento, quando aconteceu pela segunda vez: durante vertigem sobre o corpo da mulher, respirou de novo com dificuldade, agora em gozosa consumição nupcial.

O terceiro hausto ocorreu minutos atrás. Sentara-se à sala com sua velha para o almoço, mas tomou apenas uma colher de sopa. Logo, uma fisgada trespassou-lhe a cabeça. Deitou-se, então, em busca de sossego.

Deitado permanece, enquanto a tonteira começa a lhe tomar os sentidos. Quieto, mãos crispadas sobre o peito arfante, ouve o tilintar de louça na cozinha, onde a esposa lhe prepara o chá do providencial socorro.

Da cozinha ao quarto, a irrespirável eternidade. Tenta chamar pela esposa, mas apenas um suspiro lhe escapa. Agora, voluta sem agonia, se afasta com a fluidez de um sopro, cada vez mais distante da cama.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.




Um comentário: