O repórter como porta-voz da polícia
* Por
Urariano Mota
Em artigo anterior
sobre o assassinato de uma criança de 10 anos pela polícia, pude observar a
falta de investigação, ora, investigação, nem mesmo um distanciamento, da
reportagem da televisão que transmitia as informações mais absurdas, como foi o
caso de uma criança que dirigia abrindo e fechando o vidro do carro enquanto
atirava, como se fosse um supermenino, afinal executado.
Mas esta semana pude
ver que o fenômeno é maior e mais amplo, ao ver no Bom Dia Brasil esta notícia:
"Dinheiro de fraude pagava contas de Paulo Bernardo e Gleisi Hoffmann. O
documento a que a TV Globo teve acesso é um relatório da Polícia Federal sobre
o material apreendido no escritório do advogado Guilherme Gonçalves, em
Curitiba, no ano passado. Serviu de base para a Operação Custo Brasil, que
prendeu 11 pessoas na semana passada. Entre elas o próprio advogado e Paulo
Bernardo, ex-ministro do Planejamento no governo Lula e das Comunicações no
governo Dilma..". Ao ver isso, tive um choque e uma descoberta. É que já
deixou de existir a chamada imprensa investigativa. A polícia investiga pela
imprensa e faz do repórter o seu porta-voz. Tão simples, e não havia notado
antes.
Até entendemos que
diante de uma notícia-bomba, algo como "O ex-presidente Lula matou mais de
cem amantes", o repórter nem respira, toca a inverossimilhança para a
frente. Na pressa e na prensa, ele não vai deixar o furo de reportagem para
outro. Mas o que espanta é o depois da bomba, a retaguarda da notícia que não
apura nem põe um salutar sinal de interrogação, uma dúvida sequer na fala
noticiada. Pelo contrário, a retaguarda da Rede Globo, Band, SBT, rádios, e até
mesmo da imprensa escrita, se põe a levantar um autêntico castelo de cartas,
uma teoria que justifique a única verdade, a versão policial.
Imagino o dia em que a
Polícia Federal descobrir, por exemplo, que Deus existe, conforme documentos
apreendidos em investigação no Mercado Público de Água Fria. Claro, com provas
fotográficas e testemunhas. Numa delas seria visto um senhor barbudo, numa
manhã de domingo a comer cuscuz com guisado em uma mesa, num boxe do mercado.
Sim, e daí? Daí é que houve esta revelação: o grisalho homem não pagou a conta
com dinheiro vivo ou cartão. Ele sorriu, abençoou a graça da refeição, se
levantou e sumiu por uma larga porta. Intrigada, a Polícia Federal, que hoje é
o próprio olho de Deus, ao qual nada escapa, perguntou ao dono do boxe por que o
cidadão não pagou. E o comerciante assim lhe respondeu: "Esse homem pra
mim é Deus. É meu maior amigo". E os policiais, para não se ajoelharem,
registraram a ocorrência descoberta em relatório, ao qual nada escapa.
Levada a notícia para
a televisão, os apresentadores acrescentariam que essa era mais uma prova da
infinita humildade e concretude da existência divina. Quando menos se esperava,
Deus se revelara a comer cuscuz com um guisadinho no popular bairro de Água
Fria. E terminaria a notícia com o ar mais grave: "o local agora é destino
de imensa romaria, e de tal sorte, que Denizar, filho de Seu João do
Caldíssimo, está agora de plantão ali com uma imagem de São Jorge para que seja
abençoada. Fieis de um terreiro próximo, o mais antigo do Recife, o do Pai
Adão, já comparecem e batem os mais lindos toques de tambor todos os dias. O
dono da coalhada no bairro, única do Recife, se tornou o mais ardoroso crente
diante dos lucros por sua fórmula santa de coalhar o leite. E Carlos, o
barbeiro da Rua Japaranduba, afirmou que será capaz de deixar o Santa Cruz e
torcer pelo Sport, se Deus assim lhe mandar".
Tudo agora é possível.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
E para alegria dos envolvidos (na divulgação, é claro), todos acreditam na versão da "lógica" e apertam o pescoço de quem ousar duvidar. Perfeito fechamento do círculo.
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