Dona Páscoa
* Por
Urda Alice Klueger
De onde ela era eu não
faço ideia – deveria ter prestado mais atenção às conversas. Conheci-a já ali e
velha, velhíssima, na minha concepção de criança. O ali era um amplo terreno
que ainda há na Rua Sete, em Blumenau, ao lado das terras do Colégio Sagrada
Família, tendo na parte da frente, no limite com a rua, um prédio de apartamentos chamado Edifício
Beckhauser.
Dona Páscoa comprara
aquelas terras em tempos remotos, quando uma pessoa comum podia comprar terras
à rua Sete, e fico pensando no que o meu pai contava, do tempo em que,
adolescente e ajudando o meu avô a entregar hortaliças e outros produtos
agrícolas, andava pela rua Sete enterrado em lama até os joelhos. Como Dona
Páscoa era mais velha que os meus pais, decerto fora naqueles tempos que o meu
pai contava que ela comprara aquelas terras.
Minha mãe tornou-se
amiga da Dona Páscoa ali pela década de 1960, quando eu estaria pelos dez anos,
talvez, e então muitas vezes fui visitar aquela senhora de comportamento
intrigante, junto com a minha mãe.
Naquele amplo terreno
que ainda está lá Dona Páscoa vivia como que num mundo encantado, povoado pelos
seres a quem mais amava no mundo, e que eram... galinhas. Penso que numa época
remota ela fez lá uma moradia humilde e foi construindo galinheiros no entorno,
conforme sua família crescia e crescia. Aí no meio do caminho, penso que pela
década de 1950, alguém apareceu por lá e lhe fez a proposta: ganharia um
apartamento se cedesse terra na beirada da rua Sete para que se construísse um
edifício, e foi daí que surgiu o edifício Beckhauser. Quem fez o negócio não
foi muito honesto, pois em troca de toda aquela faixa de terra, Dona Páscoa
ganhou seu apartamento, sim, mas um apartamento bastante pequeno, mesmo para a
realidade dos amplos apartamentos daquela época. De qualquer forma, lá estava o
apartamento que era dela, bem luxuoso para os padrões de então, todo mobiliado
com coisas bonitas, e eventualmente Dona Páscoa recebia lá suas visitas ou
fazia lá alguma coisa, porque morava, mesmo, era lá no terreno dos fundos,
junto com as suas galinhas. O seu quartinho modesto não se diferenciava dos
tantos quartos e quartinhos que ela mesma fora construindo, ao longo da sua
vida, para as suas amigas galinhas, amigas do peito mesmo, cada uma com o seu
nome, obedecendo ao chamado da sua tutora e vindo pegar um colinho, quando ela
chamava – numa cidade que cada vez se aburguesava mais, como a nossa, aquela
senhora dona de apartamento que nesse tempo era um luxo em pleno centro da
cidade e vivendo num quartinho dentre galinheiros era uma coisa, no mínimo,
insólita, e penso hoje na grande liberdade que havia dentro de Dona Páscoa,
para estar se lixando para a opinião alheia e levar sua vida do jeito que
queria, feliz lá entre as suas galinhas!
Foi lá no mundo da
Dona Páscoa que pela primeira vez na vida vi galinhas que botavam ovos azuis –
aquilo era algo tão fascinante que até a minha mãe ficou cobiçando ter uma
galinha daquelas, e acabou por comprar uma jovem galinha da Dona Páscoa, que lá
em casa recebeu o nome de Carolina. Era uma galinha preta muito curiosa, e
envelheceu na nossa casa.
Carolina, além de pôr
ovos azuis, era a melhor choca que nós já havíamos visto, chocando ninhos
cheios de ovos um depois do outro, e criando seus pintinhos com cuidado
extremo, até que eles ficassem adultos. Infelizmente a sorte de Carolina não
foi muito boa: estava com pintinhos recém-nascidos quando um tumor surgiu na
região do seu bico, e ela não pode mais comer. Usou, no entanto, de toda a
energia que acumulara durante a vida e ficou leve como palha seca, de tanta
fome que já passara, mas não descuidou em nenhum momento de criar mais aquela
ninhada de pintinhos até que eles ficassem adultos. Só então deu-se o direito
de morrer.
Dona Páscoa, quantas
saudades vieram agora! Olhei para a janela do seu apartamento, por estes dias,
lá no Edifício Beckhauser, e as lembranças vieram em enxurrada. Não sei do que
aconteceu no seu fim, mas a senhora deve ter morrido, em algum momento. Acho
que tem um estacionamento naquele lugar, agora. Fico pensando no que aconteceu
com todas aquelas suas galinhas mansinhas e faceiras quando a senhora se foi –
será que tem mais alguém em Blumenau, hoje em dia, que ainda se lembra da Dona
Páscoa?
NOTA:
Escritora Urda Alice
Klueger lança "No Tempo da Ana Bugra" nesta quinta-feira (5), em
Blumenau
O evento ocorre na
Livraria Blulivro, no Shopping Center Park Europeu, das 18h às 21h30min
Memória narrativa,
tempo, espaço e emoção. Esse é o enredo do novo livro de Urda Alice Klueger
intitulado “No Tempo da Ana Bugra”. O lançamento da 24ª obra da escritora
ocorre nesta quinta-feira (5), na Livraria Blulivro, no Shopping Center Park
Europeu, em Blumenau, das 18h às 21h30min. Produzido pela Editora Hemisfério
Sul, o livro trata de memórias da infância da autora, com foco no fim da década
de 1950 e início da década de 1960. Segundo Urda, alguns textos foram criados
sem a pretensão de fazerem parte de um livro, mas acabaram se adequando a ele.
“Eram memórias que vinham à tona vertiginosamente e não havia como não
escrevê-las”, diz a autora.
SERVIÇO
Lançamento do livro
“No Tempo da Ana Bugra”
Dia 5 de maio, das 18h
às 21h30min
Livraria Blulivro, no
Shopping Center Park Europeu, via Expressa, Blumenau (SC)
Livro: 71 págs. Valor
R$ 20,00. ISBN: 978-85-86857-47-8
Editora Hemisfério Sul:
editorahemisferiosul@gmail.com
Autora Urda Alice
Klueger: urdaaliceklueger@gmail.com
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e quatro livros (o 24º
lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez
edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
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