quarta-feira, 4 de maio de 2016

Dona Páscoa

* Por Urda Alice Klueger


De onde ela era eu não faço ideia – deveria ter prestado mais atenção às conversas. Conheci-a já ali e velha, velhíssima, na minha concepção de criança. O ali era um amplo terreno que ainda há na Rua Sete, em Blumenau, ao lado das terras do Colégio Sagrada Família, tendo na parte da frente, no limite com a rua,  um prédio de apartamentos chamado Edifício Beckhauser.

Dona Páscoa comprara aquelas terras em tempos remotos, quando uma pessoa comum podia comprar terras à rua Sete, e fico pensando no que o meu pai contava, do tempo em que, adolescente e ajudando o meu avô a entregar hortaliças e outros produtos agrícolas, andava pela rua Sete enterrado em lama até os joelhos. Como Dona Páscoa era mais velha que os meus pais, decerto fora naqueles tempos que o meu pai contava que ela comprara aquelas terras.

Minha mãe tornou-se amiga da Dona Páscoa ali pela década de 1960, quando eu estaria pelos dez anos, talvez, e então muitas vezes fui visitar aquela senhora de comportamento intrigante, junto com a minha mãe.

Naquele amplo terreno que ainda está lá Dona Páscoa vivia como que num mundo encantado, povoado pelos seres a quem mais amava no mundo, e que eram... galinhas. Penso que numa época remota ela fez lá uma moradia humilde e foi construindo galinheiros no entorno, conforme sua família crescia e crescia. Aí no meio do caminho, penso que pela década de 1950, alguém apareceu por lá e lhe fez a proposta: ganharia um apartamento se cedesse terra na beirada da rua Sete para que se construísse um edifício, e foi daí que surgiu o edifício Beckhauser. Quem fez o negócio não foi muito honesto, pois em troca de toda aquela faixa de terra, Dona Páscoa ganhou seu apartamento, sim, mas um apartamento bastante pequeno, mesmo para a realidade dos amplos apartamentos daquela época. De qualquer forma, lá estava o apartamento que era dela, bem luxuoso para os padrões de então, todo mobiliado com coisas bonitas, e eventualmente Dona Páscoa recebia lá suas visitas ou fazia lá alguma coisa, porque morava, mesmo, era lá no terreno dos fundos, junto com as suas galinhas. O seu quartinho modesto não se diferenciava dos tantos quartos e quartinhos que ela mesma fora construindo, ao longo da sua vida, para as suas amigas galinhas, amigas do peito mesmo, cada uma com o seu nome, obedecendo ao chamado da sua tutora e vindo pegar um colinho, quando ela chamava – numa cidade que cada vez se aburguesava mais, como a nossa, aquela senhora dona de apartamento que nesse tempo era um luxo em pleno centro da cidade e vivendo num quartinho dentre galinheiros era uma coisa, no mínimo, insólita, e penso hoje na grande liberdade que havia dentro de Dona Páscoa, para estar se lixando para a opinião alheia e levar sua vida do jeito que queria, feliz lá entre as suas galinhas!

Foi lá no mundo da Dona Páscoa que pela primeira vez na vida vi galinhas que botavam ovos azuis – aquilo era algo tão fascinante que até a minha mãe ficou cobiçando ter uma galinha daquelas, e acabou por comprar uma jovem galinha da Dona Páscoa, que lá em casa recebeu o nome de Carolina. Era uma galinha preta muito curiosa, e envelheceu na nossa casa.

Carolina, além de pôr ovos azuis, era a melhor choca que nós já havíamos visto, chocando ninhos cheios de ovos um depois do outro, e criando seus pintinhos com cuidado extremo, até que eles ficassem adultos. Infelizmente a sorte de Carolina não foi muito boa: estava com pintinhos recém-nascidos quando um tumor surgiu na região do seu bico, e ela não pode mais comer. Usou, no entanto, de toda a energia que acumulara durante a vida e ficou leve como palha seca, de tanta fome que já passara, mas não descuidou em nenhum momento de criar mais aquela ninhada de pintinhos até que eles ficassem adultos. Só então deu-se o direito de morrer.

Dona Páscoa, quantas saudades vieram agora! Olhei para a janela do seu apartamento, por estes dias, lá no Edifício Beckhauser, e as lembranças vieram em enxurrada. Não sei do que aconteceu no seu fim, mas a senhora deve ter morrido, em algum momento. Acho que tem um estacionamento naquele lugar, agora. Fico pensando no que aconteceu com todas aquelas suas galinhas mansinhas e faceiras quando a senhora se foi – será que tem mais alguém em Blumenau, hoje em dia, que ainda se lembra da Dona Páscoa?


NOTA:

Escritora Urda Alice Klueger lança "No Tempo da Ana Bugra" nesta quinta-feira (5), em Blumenau

O evento ocorre na Livraria Blulivro, no Shopping Center Park Europeu, das 18h às 21h30min

Memória narrativa, tempo, espaço e emoção. Esse é o enredo do novo livro de Urda Alice Klueger intitulado “No Tempo da Ana Bugra”. O lançamento da 24ª obra da escritora ocorre nesta quinta-feira (5), na Livraria Blulivro, no Shopping Center Park Europeu, em Blumenau, das 18h às 21h30min. Produzido pela Editora Hemisfério Sul, o livro trata de memórias da infância da autora, com foco no fim da década de 1950 e início da década de 1960. Segundo Urda, alguns textos foram criados sem a pretensão de fazerem parte de um livro, mas acabaram se adequando a ele. “Eram memórias que vinham à tona vertiginosamente e não havia como não escrevê-las”, diz a autora.

SERVIÇO

Lançamento do livro “No Tempo da Ana Bugra”
Dia 5 de maio, das 18h às 21h30min
Livraria Blulivro, no Shopping Center Park Europeu, via Expressa, Blumenau (SC)
Livro: 71 págs. Valor R$ 20,00.  ISBN: 978-85-86857-47-8
Editora Hemisfério Sul: editorahemisferiosul@gmail.com
Autora Urda Alice Klueger: urdaaliceklueger@gmail.com

                   

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e quatro livros (o 24º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).

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