O passado não perdoa
A quarta personagem feminina inesquecível criada por Jorge
Amado (de tantas outras que poderiam ser citadas), ao lado de Gabriela, de
Tereza Batista e de Dona Flor, é Tieta. Como as anteriores, foi, também,
interpretada por excelentes e belas atrizes, nas adaptações que o romance que
protagonizou teve para o cinema e para a televisão, a exemplo, destaque-se, do
que ocorreu com as outras três. Por meio dessa protagonista, o escritor confrontou
dois mundos diferentes, em termos de mentalidade, de comportamento, de padrões
morais e de formas como a mulher era (e em certa medida ainda é) encarada pela
sociedade.
De um lado, está aquela “função” feminina tradicional, milenar,
ainda viva em localidades mais afastadas deste país de dimensões continentais,
que lhe é atribuída. Refiro-me ao papel específico, exclusivo, de mãe de
família, de dona de casa, de esposa dócil e submissa ao marido. No outro extremo,
todavia, estão mulheres que já conquistaram e seguem conquistando crescentes
espaços na sociedade, em busca da igualdade entre gêneros, inclusive no aspecto
sexual, como conseqüência do advento e da vulgarização da pílula
anticoncepcional, situação característica, sobretudo, das grandes metrópoles.
Como se vê, são dois mundos bem distintos.
A trajetória da complexa personagem é traçada por Jorge
Amado, com a maestria que sempre o caracterizou, no extenso romance “Tieta do
Agreste”, publicado em 17 de agosto de 1977. A história começa como tantas
outras que ocorrem por estes grotões mais distantes e conservadores deste
imenso País. Trata do caso de uma garota, ainda adolescente, que é apresentada
às delícias do sexo fora do casamento e... gosta. Todavia, tem que arcar com as
conseqüências. É expulsa de casa pelo pai, que não admite isso em hipótese
nenhuma e sequer a reconhece mais como filha. Quantas garotas já não passaram
por experiência como essa e não tiveram tratamentos iguais ou parecidos?!
Muitas! Muitíssimas! Tantas que é impossível de sequer estimar quantas foram ou
são. Invariavelmente, o destino dessas moçoilas é o de irem parar em algum dos
tantos bordéis existentes por aí, onde se desgastam, se consomem e se destroem.
Ou são destruídas. E raríssimas conseguem mudar de vida e voltar a serem
aceitas pela sociedade. Não faço aqui juízo de valor. Literatura e moral são
compartimentos distintos.
Tieta, adolescente de 16 anos de idade, bela, desejável e
fogosa, havia sido expulsa de casa pelo pai, Zé Esteves, machista renitente e
inveterado, por ter tido relações sexuais com um rapaz da localidade. Foi denunciada pela irmã, Perpétua. Recebeu uma
surra de cajado, daquelas que ninguém esquece, do velho turrão e foi
escorraçada de casa, sem chances de defesa e sem perdão. Para não se tornar
objeto de escárnio dos moradores de Santana do Agreste, vai para longe, muito
longe dali, para São Paulo. Passado mais de um quarto de século da expulsão,
Tieta regressa à terra natal. Volta, aparentemente, por cima. Apresenta-se como
uma viúva de um grande empresário paulistano, de um comendador, rica e generosa.
À sua volta encontra típicos representantes do interior baiano, lutando pela
sobrevivência, defendendo ou resistindo a preconceitos, almejando pequenas
ambições. Eles compõem um painel vivo dos conflitos e consequências
provincianos que antecedem a chegada de sinais do progresso.
Tudo caminhava bem, até a verdade sobre a condição de Tieta
ser descoberta. Afinal, salvo exceções, o passado não perdoa. No caso dela, não
perdoou. Ela, só é aceita pelos moradores de Santana do Agreste enquanto finge
ser o que não é, ou seja, a viúva rica de um empresário paulistano. Quando sua
verdadeira identidade, e a forma como enriqueceu, são descobertas, foi um Deus
nos acuda. Tieta havia feito fortuna, em São Paulo, às custas da “profissão
mais antiga do mundo”. Primeiro, havia sido prostituta e, depois, dona de bordel.
Isso ninguém aceita em sua cidade natal. Assim, mais uma vez rejeitada, ela
retorna ao “Sul maravilha” para retomar sua vida naquele outro mundo, tão
diferente do de sua terra natal, onde não é repudiada.
Jorge Amado descreve com bastante realismo, de forma nua e
crua, a primeira experiência sexual de Tieta, a que iria mudar a vida dela para
sempre. Relata: "O homem a derruba sobre as folhas dos coqueiros,
suspende-lhe a saia, arranca-lhe a calçola, trapo sujo. De joelhos sobre ela,
enterra o chapéu na areia para que não voe e se perca, abre a braguilha. A
menina o deixa fazer e quer que ele o faça".
Em outro trecho, o escritor traça paralelo entre os tais
dois mundos distintos a que me referi: "O
mundo de Agreste, aparentemente simples e pacífico, revela-se mais difícil e
confuso do que o mal afamado universo do meretrício onde ela se movimenta entre
putas, rufiões, cáftens, gigolôs, patroas de rendevus, desde a partida na
boleia do caminhão há vinte e seis anos. Mais fácil defender-se e comandar no
Refúgio dos Lordes. Lá, os sentimentos, como os corpos, estão expostos. Aqui, a
cada passo, ela tropeça em simulação, engano e falsidade; ninguém diz tudo o
que pensa e demonstra por inteiro seus desígnios; todos encobrem algo por
interesse, medo ou pobreza. Mundo de fingimento e hipocrisia, em acirrada luta
por ambições tacanhas, minguados interesses".
Quando expulsa de Santana do
Agreste, Tieta era mais “cabritinha” (como o pai a chamou), solta, desbocada e,
principalmente, como adolescente que era, rebelde. Em sua volta, 26 anos depois,
com o firme propósito de se vingar de toda a hipocrisia da cidade, era
experiente e sábia, tendo aprendido com a vida, depois de comer o pão que o
diabo amassou. Ainda assim... Não conseguiu ser aceita. Aquele não era mais seu
mundo, embora tenha nascido nele. Não há como negar que Tieta é mais uma das
tantas personagens femininas inesquecíveis do rico filão de tipos do universo
da ficção.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Na sua narrativa, vão desfilando as várias atrizes que fizeram Tieta, de fato alguém que nunca coube em Santana do Agreste.
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