terça-feira, 7 de julho de 2015

A velha mangueira



* Por Evelyne Furtado



Sempre que lembro da casa dos meus avós, visualizo a velha mangueira que testemunhou alegrias, festas, almoços familiares, reuniões afetivas e políticas, e como não poderia deixar de ser, também os momentos de tristezas que feriram nossa família.

Aquela casa recebia com afeto e abundância. A anfitriã era esmerada nos cuidados e simples na acolhida. O seu lar era o lar de sua família e dos amigos; dos amigos dos filhos e dos amigos dos netos. Também era das pessoas mais necessitadas que iam pedir alguma coisa. Era de todos que ali viessem buscar ou levar algo.

A casa da nossa família teve dois momentos. Num primeiro momento foi regida com alegria e ordem por minha avó. Nada escapava ao seu olhar atento e ela própria cuidava das suas flores com o apoio de Francisco, o menino jardineiro. Sentíamo-nos à vontade para levarmos nossos amigos ali, mas ninguém ousava bagunçar, nem sair do espaço destinado aos mais jovens.

Com a morte de minha avó, a casa adotou outro rito. Vovô que nunca havia se ligado a nenhum aspecto doméstico, assumiu as rédeas do lar e deu seu tom. Acabou-se a formalidade. Ele, altivo e boêmio, não permitia que nenhum dos filhos se metesse na sua administração. Em compensação os netos homens não saíam de lá, onde compartilhavam com o avô da cerveja e da boa mesa.

Aquele teto nunca ficou vazio. Sempre havia muita gente por lá. Mas a ocasião nem sempre foi de festa. Amigos em grande quantidade lá estiveram para levar solidariedade nas perdas que afligiram nossa família.

Recordo a tristeza de um entardecer sombrio quando entrei, menina de 11 anos, pelo grande portão de ferro. Havia muitas pessoas no jardim, na varanda, nas salas. Alguns rostos eram-me conhecidos, outros não. E eu via uma tristeza profunda no semblante de cada um. Era o primeiro golpe no peito do velho boêmio. A perda do filho jovem e sentida por grande parte da cidade. Outras viriam e todas o atingiriam no âmago.

Minha avó não suportou outra. Ele agüentou mais três e nunca fraquejou. A dor era visível. O desalento também. Mas assim como da primeira vez, foi ele quem, após um período de luto, bateu palmas com força, no terraço, ao lado da mesma mangueira e disse: "amanhã, os meninos voltam ao colégio e todos retornam à vida normal." Ninguém o desobedeceu e a dor passou a ser apenas sentida, não mais cultuada.

A última vez que estive com meu avô, foi lá no terraço, perto da mangueira, no final de 1993. Ele, aos 80 anos, parecia forte e como sempre estava acompanhado de amigos naquela manhã. Conversamos sobre o livro de crônicas de Nélson Rodrigues com o qual eu o havia presenteado no natal. Naquela noite vovô Luís sentiu uma dor forte e foi hospitalizado. Uma semana depois nos deixou.

A casa foi vendida há pouco. Hoje passei em frente e vi com consternação o estado lastimável daquela bonita e original edificação. Acabou-se a casa do meu avô. A velha mangueira ainda está lá, embora também quase no fim.

As lições de humanidade e união, ao contrário, permanecem em cada um de nós que continuamos nos reunindo com direito a alegrias, cerveja, discurso e choro.

* Poetisa e cronista de Natal/RN

Um comentário:

  1. A minha avó morreu antes do meu avô (doze anos antes) e também tivemos a oportunidade de ver as duas maneiras de reger a orquestra. Ao contrário do que esperávamos, meu avô fez a família ficar mais unida do que antes. Quanta saudade! Você me transportou ao passado e a uma casa que acabou há 17 anos(ainda que esteja de pé). Não tinha mangueira, mas sim um umbuzeiro que tinha frutos docíssimos, ao contrário do que costumam ser os umbus comuns.

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