A casa do mineiro
* Por
Visconde de Taunay
Está
a ceia na mesa. Torne o bom acolhimento desculpável o mau passadio. WALTER
SCOTT Ivanhoe.
Quando assomaram os
dois viajantes à entrada do terreiro que rodeava a vivenda de Pereira,
saíram-lhes ao encontro quatro ou cinco cães altos e magros, que aos pulos
saudaram o dono da casa com uma cainçada de alegria.
Puseram-se algumas
galinhas a correr atarantadas, ao passo que dous galos, já empoleirados na
cumeeira da morada, bradavam novidade e uns porcos e bacorinhos aqui e acolá se
erguiam dentre palhas de milho e estremunhados olhavam para os recém-chegados
com olhos pequenos e cheios de sono.
Do interior da
habitação, não tardou a sair uma preta idosa, mal vestida, trazendo atado à
cabeça um pano branco de algodão, cujas pontas pendiam até ao meio das costas.
- Olá, Maria Conga -
perguntou Pereira - que há de novo por cá?
- A bênção, meu senhor
pediu a escrava chegando-se com alguma lentidão.
- Deus te faça santa
respondeu o mineiro. Como vai a menina? Nocência?
- Nhã está com sezão.
- Isto sei eu,
rapariga de Cristo; mas como passou ela de trasantontem para cá?
- Todo o dia, vindo a
hora, nhã bate o queixo, nhor-sim.
- Está bem... É que o
mal ainda não abrandou... Daqui a pouco, veremos. E a janta? ... Está pronta?
Venho varado de fome. Que diz, sr. Cirino? indagou ele voltando-se para o
companheiro.
- Não se me dava
também de comer alguma coisa. Temos razão para...
- Pois então
interrompeu Pereira ponha pé no chão e pise forte, que o terreno é nosso. Minha
casa, já lho disse, é pobre, mas bastante farta e a ninguém fica fechada.
Deu logo o exemplo, e
descavalgou do cavalinho zambro, o qual foi por si correndo em direção a uma
dependência da casa com formas de estrebaria.
Apeou-se também
Cirino, mas, ao penetrar numa espécie de alpendre de palha que ensombrava a
frente toda, mostrou repentina e viva contrariedade no gesto e na fisionomia.
- Ora, sr. Pereira
exclamou ele batendo com o tacão da bota num sabugo de milho só agora é que me
lembro que as minhas cargas vão todas tomar caminho do Leal e aqui me deixam
sem roupa, nem medicamentos. Que maçada! Devíamos ter esperado na boca da sua
picada.
Respondeu-lhe o
mineiro todo desfeito em expansivo riso:
- Olé, pois o doutor é
tão novato assim em viagens? Então pensa que lá não deixei aviso seguro à sua
gente? Não se lembra de um ramo verde que pus bem no meio da estrada real?
- É verdade confirmou
Cirino.
- E então? Daqui a
pouco a sua camaradagem está batendo o nosso rasto. Entremos, que a fome já vai
apertando.
Consistia a morada de
Pereira num casarão vasto e baixo, coberto de sapé, com uma porta larga entre
duas janelas muito estreitas e mal abertas. Na parede da frente que, talvez com
o peso da coberta, bojava sensivelmente fora da vertical, grandes rachas
longitudinais mostravam a urgência de sérias reparações em toda aquela obra
feita de terra amassada e grades de pau-a-pique.
Ao oitão da direita
existia encostado um grande paiol construído de troncos de palmeiras, por entre
os quais iam caindo as espigas de milho, com o contínuo fossar dos porquinhos,
que dali não arredavam pé.
Corrido na frente de
toda a vivenda, via-se um alpendre de palha de buriti, sustentado por grossas
taquaras, ligeiro apêndice acrescentado por ocasião de alguma passada festa, em
que o número de convidados ultrapassara os limites de abrigo da hospitaleira
habitação.
Internamente era ela
dividida em dois lanços: um, todo fechado, com exceção da porta por onde se
entrava, e que constituía o cômodo destinado aos hóspedes; outro, à retaguarda,
pertencia à família, ficando portanto completamente vedado às vistas dos
estranhos e sem comunicação interna com o compartimento da frente.
Era de barro compacto
e socado o chão desta sala, vendo-se nele sinais de que às vezes ali se acendia
fogo: pelo que estavam o sapé do forro e o ripamento revestidos de luzidia e
tênue camada de picumã que lhes dava brilho singular, como se tudo houvera sido
jacarandá envernizado.
- Isto aqui disse
Pereira penetrando na sala e sentando-se numa tripeça de pau não é meu, é de
quem me procura. Poucos vêm cá decerto parar, mas enfim é sempre bom cantar com
eles... Minha gente mora na dependência dos fundos.
E apontou para a
parede fronteira à porta de entrada, fazendo um gesto para mostrar que a casa
se estendia além.
- Sr. Pereira - disse
Cirino recostando-se a uma sólida marquesa não se incomode comigo de maneira
alguma... Faça de conta que aqui não há ninguém.
- Pois então -
retorquiu o mineiro - deite-se um pouco, enquanto vou lá dentro ver as
novidades. A hora é mais de comer, do que de cochilar; mas espere deitadinho e
a gosto, o que é sempre mais cômodo do que ficar de pé ou sentado.
Não desprezou o
hóspede o convite. Tirou o pala, puxou as botas e, cruzando-as, fez dos canos
travesseiros, em que descansou a cabeça.
Quem se coloca em
posição horizontal, depois de vencidas umas estiradas léguas, adormece com
certeza. Depressa veio, pois, o sono cerrar as pálpebras do recém-chegado e
intumescer-lhe o peito com sossegada respiração.
Dormiu talvez hora e
meia, e mais houvera dormido, se não fosse acordado pelo tropel de animais que
paravam e por grita de gente a pôr cargas em terra.
Assomou o sr. Pereira à
porta com ar jovial.
- Então que lhe disse
eu?
- De fato; estou agora
sossegado.
- E o sr. tomou uma
boa data de sono.
- Quem sabe uma hora?
- Boa dúvida, senão
mais. Fiquei todo este tempo ao lado de Nocência, que de frio batia o queixo,
como se estivesse agora em Ouro Preto, quando cai geada na rua.
- Então não vai
melhor?
- Qual!... Depois que
o sr. tiver comido, há de ir vê-la. Está, pobrezinha, tão desfeita que parece
doente de uns dois meses atrás.
- Felizmente -
observou Cirino com alguma enfatuação aqui estou eu para pô-la de pé em pouco
tempo.
- Deus o ouça - disse
Pereira com verdadeira unção.
- Patrícios! Oh!
gente! - gritou ele em seguida para os dois camaradas chegados de pouco vão
mecês sestear naquele rancho, ali. Perto há boa água, e lenha é o que não
falta: basta estender o braço. Olhem, dêem ração de fartar os animais.
Aproveitem o milho, enquanto há: é a sustância desses bichos. Aqui, vendo-o
baratinho. Um atilho por um cobre e não são espigas chochas, nem de grão
soboró. Eh! Lá! Maria Conga, vamos com isso!... janta na mesa!...
Foram o chamado e as
indicações de Pereira cumpridas sem demora.
Apareceu a velha
escrava, que estendeu em larga e mal aplainada mesa uma toalha de algodão
grosseira mas muito alva, sobre a qual derramou duas boas cuias de farinha de
milho: depois, emborcou um prato fundo de louça azul, e ao lado colocou uma
colher e um garfo de metal.
- Sente-se, doutor -
disse Pereira para Cirino - agora não manduco com mecê, porque já petisquei lá
dentro. Desculpe se não achar a comida do seu agrado.
Vinha nesse momento
entrando Maria Conga com dois pratos bem cheios e fumegantes, um de
feijão-cavalo, outro de arroz.
- E as ervas? -
perguntou Pereira. - Não há?
- Nhor-sim. Eu trago
já respondeu a preta que com efeito voltou daí a pouco.
Tornou o mineiro a
desculpar-se da insuficiência e mau preparo da comida.
- Não lhe dou hoje
lombo de porco; mas o prometido não cai em esquecimento. Isto lhe posso
assegurar.
- Estou muito contente
com o que há protestou com sinceridade Cirino.
E, de fato, pelo modo
por que começou a comer, repetindo amiudadas vezes dos pratos, deu evidentes
mostras de que falava inteira verdade.
- Maria - disse
Pereira para a escrava que se fora colocar a alguma distância da mesa com os
braços cruzados traz agora mel e café com doce.
Vieram a sobremesa e a
xícara de café que completaram a refeição.
- Ah! - exclamou
Cirino com patente satisfação estirando os braços fiquei que nem um ovo. O
feijão estava de patente. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que me deu este
bom agasalho.
- Amém! - respondeu
Pereira.
(Inocência, cap. IV,
1872.)
*
Alfredo Maria Adriano d'Escragnolle Taunay, primeiro e único visconde de
Taunay, foi um nobre, escritor, músico, artista plástico, professor, engenheiro
militar, político, historiador e sociólogo, membro da Academia Brasileira de
Letras.
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