sexta-feira, 24 de julho de 2015

Devaneios de uma roqueira 8


* Por Fernando Yanmar Narciso


CAPÍTULO 4 (PARTE 1/2)


Pela primeira vez em muito tempo despertei cheia de energia, antes mesmo de o despertador tocar, dos vaqueiros passarem com seus berrantes ou até daquele sonho maluco que tanto me assombra. Numa noite ‘ocê’ solava Maggot Brain do Funkadelic por quinze minutos num inferninho e dois dias depois acorda com o 14 Bis, recriado por Picasso, tatuado nas costas...

Seis e meia da matina! Considerando que tenho fama de ser a ‘Miss Hibernação’ da família e despencar por horas estando sóbria, chapada ou depois de transar a noite toda, acordar tão cedo sem ter sido forçada é um feito digno de ser relatado à imprensa. Se eu fosse religiosa, seria praticamente uma heresia! Depois da labuta de ontem à tarde e do FDS miserável, tudo que eu precisava mesmo era de uma noite de sono digna de um hipopótamo.

Dei uma olhada no espelho e por pouco não me reconheci! As sardas nas bochechas eram as mesmas de sempre, já o rosto ‘escondido’ atrás delas... Parece até que os deuses da ironia me fizeram uma plástica durante o sono! Barbie sempre se impressiona com o quanto minha pele se rejuvenesce enquanto eu durmo. Gosh, acordei tão bem que ‘tava’ até com um tiquinho de tesão. E como o único homem disponível por essas bandas era meu ex, Ulysses, era melhor eu pensar em alguma coisa pra matar o tempo até a Barbie fazer o café...

Preciso agradecer a ela por ter conseguido resgatar minha guita depois do show de sábado. A neblina amanheceu tão densa que dava pra abrir caminho dentro dela com facão. E com esse friozinho do jeito que eu gosto, resolvi dar uma volta pelo caminho de terra atrás do posto e levar comigo meu violão Tagima branco. Vai que surgia inspiração pra alguma letra nova no caminho.

É o que Barbie chamava de meu ‘momento Princesinha da Disney’ quando vim morar aqui, tocando violão pros passarinhos, pras árvores... Depois de uma hora batendo perna no sereno, não consegui pensar em nada que prestasse! Uma notinha aqui e ali, arranjos aleatórios, umas duas frasezinhas sem muito nexo... ‘Falo com as plantas e elas gritam comigo/ Canto para as rosas e elas apodrecem’. Melhor anotar no celular quando voltar pra casa...

Crap, compor era mais fácil nos meus tempos de mochileira, batendo perna pelas entranhas do país. Escrevia em qualquer coisa, de guardanapo usado às roupas do corpo. Às vezes me pego pensando se faz mesmo onze anos que eu tive coragem de fugir de casa e girar pelo Brasil feito uma enceradeira, só pra acabar voltando pra São Modesto, toda imunda e maltrapilha só com cinco reais no bolso...

Ainda estava a uns três minutos de distância do posto de gasolina e já podia identificar os típicos sons matinais: As frigideiras e a chapa chiando, Bárbara implicando com alguém no balcão e, o que mais se ressalta, os grunhidos guturais de Tião Chorume, o radialista mais desaforado e nojentão da história da rádio pirata brasileira.

Reza a lenda que ele apagou sozinho o fogo num prédio de três andares com o próprio vômito, ARGH! Não dá pra negar o bom gosto musical dele, mas é a única coisa que se salva naquele caminhão de lixo! De longe podia ouvi-lo pondo no ar Back In Black, do AC/DC, e estabanado que só ele, ganindo junto com a música e obviamente acabando com ela...

- Ah, me faça favor, Ulysses!- Implicância é o maior hobby de minha prima... - Toda vez é a mesma coisa: ‘Ocê’ chega aqui numa larica dos diabos, come umas quarenta banana caturra numa sentada, não paga e ainda quer pernoitar de graça? Aqui não, ‘Ceição’! Ou me dá os dez do pernoite ou vai esfregar o chão do pátio pelo resto da semana!
- De manhãzinha e já arrumando briga, Barbie?- Cheguei de mansinho por trás dos dois.
- Uai, sô! Ó só quem resolveu apostar corrida com o despertador, cumádi!

ATERRO FM, 109,2! A RÁDIO QUE TOCA O QUE CHOCA!- Adoro as guitas desafinadas e a microfonia dessa vinheta!- Eita, nós! E esse foi o mega-super-ultra-arqui clássico AC/DC, podridão vinda direto da Austrália pros seus ouvidos! Lembrando ‘ocêis’, masoquistas nascidos em São Modesto, que o desafio do mês continua. Levei um ano pra encontrar, mas tenho aqui na minha mão o original, o chapéu verdadeiro da Noviça Voadora! ‘Ocêis’ têm até sábado pra apresentar lá na frente da igreja da cidade alguém doido o bastante pra colocar esse chapéu, subir na torre e testar se ele funciona de verdade! Valendo um apartamento com seis cômodos em Juiz de Fora, todo mobiliado! Ê, trem ‘bão’ da p****! Quem vos berrou foi o primeiro e único Tião Chorume, despedindo-se desse buraco de rato chamado São Modesto pelas próximas seis horas. Que vão todos pro inferno!

- Não fossem as músicas que esse imbecil toca...- Bárbara comenta, passando uns mistos na chapa.- E então, descontou na cama as duas noites horríveis?
- Um tiquinho... E como é que foi aqui embaixo?
- A mesma coisa de sempre... Pus o DVD de Woodstock e fiquei cochilando no balcão, até ‘ocê’ dar de tocar guitarra dormindo e acordar todo mundo de madrugada.
- Kurt Cobain! De novo?- Não se espantem, isso acontece comigo com muita frequência. Me dá crise de sonambulismo e eu sonho que ‘tô’ no palco...- Well. Foi pelo menos uma música calma?
- Hino da Independência!
- Ai, sério isso? Foi mal... Me passa aí um pão na chapa e faz um leite com abacate.
- Na horinha, Lexi. Vai de geléia?
- É como perguntar se boi quer capim, né, Barbie?

Além de pinguça e junkie, também sou uma formiguinha. Com o tanto que eu tenho de caminhar indo e voltando da cidade, podia perder ainda uns dois quilos, não fosse meu vício na irresistível geléia de cajá Mãe Rotscheider. O alemão Chicão Rotscheider é nosso prefeito quase desde o tempo dos dinossauros. Sua família, fundadora dessa ratoeira, tem sustentado a cidade há gerações com geléias, compotas e frutas cristalizadas.

CONTINUA...

* Escritor e designer gráfico. Contatos:
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