domingo, 26 de julho de 2015

O bombardeio de São Paulo


* Por José Carlos de Macedo Soares

Só na manhã de 9 [de julho de 1924] os paulistanos começaram a perceber o abandono em que estavam. No correr desse dia os revoltosos ocuparam toda a cidade. Foi nessa manhã que assistimos a uma cena de saque num armazém da firma Matarazzo, realizada por elementos maus da população.

Depois da ocupação revolucionária interveio o sr. Prefeito no sentido de manter a ordem, defender a propriedade pública e privada, assegurando a continuidade da administração municipal.

Tão calmo e pacífico correu o dia 10 que a Associação Comercial cogitou de refazer a vida normal da cidade, pela reabertura do comércio e das fábricas.

Enquanto o governo estadual se manteve no seu posto, a população e seus principais representantes rodearam-no de um apoio firme e completo. Nunca ouvimos nesses dias uma palavra de dúvida, e, se esse apoio moral não passou eficazmente para o terreno da cooperação material, foi exclusivamente por culpa do governo cujo otimismo e tranqüilidade dispensavam completamente qualquer colaboração fora da máquina governamental.

Diante de um governo de fato, em face da ocupação militar triunfante, a população tratou de defender os seus interesses vitais, provendo por seus chefes naturais às necessidades mais urgentes da cidade.

No dia 11, às 10 horas da manhã, depois de dois dias tão calmos que se cogitava, como dissemos, de restaurar a atividade comercial do centro urbano, foram ouvidos os primeiros estampidos do bombardeio. No dia 12 o fogo dos canhões legalistas semeava a morte e a destruição a esmo pela cidade.

Nesse dia, a impressão pública de terror diante do bombardeio implacável, determinou a intervenção do corpo consular de S. Paulo junto ao general Sócrates, e em seguida a mensagem telefônica de uma comissão de paulistas dirigida ao presidente da República.

O general Sócrates propôs aos cônsules que o general Isidoro lhe remetesse uma planta da cidade assinalando os sítios ocupados por suas tropas para que aí se concentrassem os fogos legalistas!... O sr. presidente da República, por intermédio do seu ministro da Guerra, confundindo propositalmente uma grande cidade de 700.000 habitantes com a restrita zona ocupada por 3.000 soldados revolucionários, declarou que não podia prescindir do emprego da artilharia contra o inimigo, teimando assim, a pretexto de hostilidade militar, em semear por toda a vasta capital paulista o fogo de suas granadas. Outras tentativas foram feitas para que cessasse este crime inqualificável, mas todas elas foram frustradas ou repelidas pelo governo federal e seus agentes.

O bombardeio demoliu e matou impunemente em S. Paulo durante cerca de vinte dias. As balas caíam em quase todos os bairros da cidade. Semearam o pânico; provocaram cenas intensas de horror e sofrimento; causaram prejuízos mortais e materiais de toda casta.1

Várias tentativas foram feitas para o restabelecimento da paz. Não só os interesses imediatos da cidade martirizada eram por nós considerados. Visávamos ainda os altos interesses da nação, o seu futuro, o apaziguamento das paixões e a restauração da concórdia entre seus filhos.

Os revoltosos permaneceram em S. Paulo enquanto quiseram. Tomaram livremente a resolução de abandoná-la e o fizeram com a calma e as facilidades que todos conhecem. A legalidade resumiu sua atividade militar ao bombardeio às cegas da cidade. Dos rincões de Guaiaúna semeou a morte pelos paulistanos desarmados. Destruiu propriedades de pessoas que nada tinham que ver com a revolta. Fez um grande mal a inocentes, cometeu as maiores injustiças. E, no fim desses dias de tragédia, as tropas legais entraram na cidade, depois da retirada dos revoltosos...

Mas os responsáveis por essa intolerável violência tinham razões de extrema gravidade moral para não procederem com a população de S. Paulo com a injustiça, a iniqüidade, a crueldade com que o fizeram. Na comunhão brasileira S. Paulo representa um centro de tradições patrióticas que só pode desconhecer o indivíduo totalmente ignorante da História do Brasil. No conjunto da nossa civilização moderna, S. Paulo é uma força de progresso tão evidente que seu papel na Federação já foi acertadamente comparado ao da locomotiva arrastando um pesado comboio,

É certo que na política nacional o papel de S. Paulo não tem estado na altura de suas responsabilidades sociais e econômicas; mas a esse abstencionismo paulista tem correspondido um desinteresse completo por cargos, empregos e propinas federais, de modo que S. Paulo, concorrendo poderosamente para o orçamento da União, deixa todas as vantagens na distribuição das rendas que saem principalmente do seu labor, aos outros membros da Federação menos favorecidos do que ele, pela fertilidade do seu solo, pela energia, espírito de iniciativa e amor ao trabalho dos seus filhos.

Mas no círculo restrito dos interesses políticos do momento, o fato essencial é que a candidatura Bernardes teve seu surto principal graças ao apoio desinteressado de S. Paulo; manteve-se nas suas esperanças devido unicamente à fidelidade dos políticos paulistas; alcançou finalmente as cumeadas do poder, graças ao concurso moral e material do Estado de S. Paulo. A unanimidade da imprensa política de S. Paulo concorreu poderosamente para a formação da opinião "bernardista" no Estado, favorecida pela pouca simpatia de que gozava o seu ilustre antagonista, cujas atitudes anteriores foram muitas vezes opostas, com ou sem razão, ao sentimento paulista.

Pois se tinha sido S. Paulo o esteio da candidatura Bernardes; se esse candidato só chegou ao Catete valendo-se da força moral de S. Paulo na Federação como poderiam os paulistas esperar que os tratassem como inimigos e os castigassem coletivamente a bala, como criminosos?

Durante quatro dias de luta os paulistas apoiaram fielmente o governo legal. Depois, submetidos ao governo de fato dos revolucionários, jamais deram prova de adesão à causa oposta à legalidade. O governo nunca os acusou, nem poderia mesmo ter acusado, de deslealdade, nem apresentou nenhuma prova de que tivessem pactuado com os revolucionários. Mas nem por isso os poupou, nem deixou de matá-los friamente à distância, crivando a cidade das balas de seus canhões.

Todas as manifestações paulistas em defesa da população bombardeada foram uniformemente de respeito e acatamento à autoridade legal. Mesmo nos piores dias, sempre nos voltamos para o aparelho legal do país do qual reclamamos as medidas legais reguladoras da vida pública no Estado. Em todas as nossas mensagens escritas, providências ou reclamações, reconhecíamos o governo legal, superior pela força da lei ao governo da força à cuja lei estávamos forçados a obedecer.

S. Paulo e sua população continuavam, pois, sob a égide do aparelho constitucional da República. Não era uma cidade inimiga, mas uma cidade ocupada pelo inimigo.

O presidente da República tinha os mais sérios compromissos políticos com o Estado em cujos ombros chegou à magistratura suprema. Mas tinha maiores compromissos morais com o grande centro de atividade pacífica, que servia eventualmente de teatro a um dos atos da tragédia provocada pela sua política de vinganças e de ódios e o qual se mantinha, não obstante a ocupação inimiga, solidário com o organismo legal do Estado.

Os deveres de consideração e respeito que prendiam o sr. Artur Bernardes a S. Paulo não eram só os decorrentes dos seus compromissos de candidato; eram principalmente os que derivavam da sua magistratura em face de uma das maiores unidades da Federação, fiel à ordem legal da República.

Todas essas razões deviam suster o fogo da artilharia legalista diante da terceira cidade da América do Sul. Mas todas elas desapareceram diante da necessidade de mascarar uma extraordinária inatividade militar. Não ousando combater os revolucionários, a legalidade preferia crivar de balas, à distância, a casaria e os habitantes inermes de uma cidade laboriosa e pacífica, à qual tinha, pelo contrário, o dever de proteger e defender. Incerto da fidelidade dos seus defensores, o governo, não podendo contemporizar em silêncio, massacrava de longe inocentes e desarmados. S. Paulo foi a vítima de um pretexto. Afirmava o governo que o bombardeio fazia parte do seu plano de reconquista da cidade, mas de fato o quartel general legalista estava farto de saber que os seus tiros, semeados a esmo na cidade, não atingiam nem podiam atingir os revoltosos. Sabia que militarmente de nada adiantavam às operações, e que eles apenas vitimavam, nas casas e nas ruas, os habitantes incapazes de se defenderem...

Esse terrível espetáculo durou cerca de vinte dias e duraria eternamente se os revoltosos não se decidissem a largar S. Paulo, descrevendo pelo interior uma larga trajetória. Fizeram-no eles quando quiseram, sem incômodos, sem pressa, sem atropelo. Depois do abandono voluntário, a legalidade retomou a cidade como o teria feito se não disparasse um único dos seus canhões.

No Relatório apresentado pelo prefeito de S. Paulo, dr. Firmiano Pinto, há as seguintes informações oficiais sobre os resultados do bombardeio da cidade:
"A Inspetoria Geral de Fiscalização procedeu a um penoso trabalho de exame em toda a cidade dos prédios danificados por granadas e balas e apurou devidamente verificados 1.182. Por inspeção posterior pode-se asseverar que esse número vai a mais de 1.800."
2. O ilustre juiz federal de S. Paulo, no despacho de pronúncia relativo ao processo dos revolucionários de 1924, refere-se ao bombardeio da cidade cujo espetáculo esse magistrado assistiu e acompanhou quotidianamente.

(Justiça A revolta militar em São Paulo, 1925.)


* Jurista, formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, historiador e político, membro da Academia Brasileira de Letras.

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