Sistema de celebridade
O papel da imprensa, dos mais importantes
em qualquer sociedade democrática que se preze, é o de informar tudo o que
acontece, com exatidão, isenção e responsabilidade. Para tanto, tem que ser
absolutamente livre, sem qualquer espécie de restrição ou de coação, nem de
governos, nem de anunciantes, nem de políticos e nem de quem quer que seja.
Todavia, sua função é trazer as informações ao cidadão e não ser “ela” a
notícia. De uns tempos a esta parte, contudo, alguns órgãos com a missão de bem
informar a população vêm distorcendo (alguns sutilmente, outros de forma
ostensiva) sua obrigação. Há jornais e revistas, por exemplo, transformados
numa espécie de partidos de oposição, o que, óbvio, não é e nem deveria ser seu
papel. É grave distorção de função. Arregimentam, é certo, grande número de
correligionários. Perdem, todavia, o que têm (ou deveriam ter) de mais
precioso: a credibilidade.
O escritor Umberto Eco classifica esse
estilo contemporâneo de fazer jornalismo de "sistema de
celebridades". Vários meios de comunicação não se limitam mais a
simplesmente reportar o que acontece, como deveriam sempre fazer, mas
proposital ou acidentalmente, deliberada ou fortuitamente, acabam ou sendo
notícia ou a induzindo a acontecer. O romancista italiano cita, a título de
exemplo, um caso em que isto ocorreu: "A contestação estudantil de 1968
foi influenciada pela intervenção da mídia, que favorece a sua reprodução quase
instantânea em países diferentes com padrões similares. Mas se no tocante a
1968 se pode falar de um fenômeno que explodiria de qualquer maneira por uma
necessidade histórica, diferentes são as reflexões a fazer pelas muitas
reproduções de 1968 em menor escala. Freqüentemente elas brotaram porque grupos
estudantis tendiam a copiar a imagem do estudante criada pela mídia".
A imprensa, muitas vezes de forma até
involuntária (mas às vezes deliberada), é criadora por excelência de
estereótipos. Com o passar do tempo, de tanto o modelo estereotipado ser
imitado, finda por se tornar concreto. Da mesma forma que os órgãos de
comunicação podem ser utilizados para opor resistência a tiranos e tiranias – o
Leste europeu criou seus órgãos "underground", mimeografados, para
expor a verdade ao povo, alguns dos quais com circulação até maior do que os
oficiais – se prestam a perpetuar ditaduras.
Não é por acaso que quando se dá um
golpe de Estado, os primeiros pontos a serem tomados pelos golpistas são as
emissoras de rádio e televisão e as redações de jornais. Por que? Porque uma
imprensa livre é a maior arma da sociedade contra tiranos e tiranias. A
divulgação feita, em 19 de dezembro de 1984, pelo jornal "The Washington
Post", acerca do objetivo da missão ultra-secreta da nave norte-americana
reutilizável "Discovery", que seria lançada no espaço no dia 23 de
janeiro de 1985, levantou, nos EUA, uma enorme polêmica sobre a liberdade de
imprensa.
O Pentágono considerou a quebra de
sigilo uma violação às normas de segurança nacional. O editor do
"Post", Benjamin Bradley, repudiou a acusação, feita pelo próprio
secretário de Defesa, Casper Weinberger, argumentando que o cidadão daquele
país tinha todo o direito de saber sobre o programa do avião orbital, cuja
missão era a de espionar o território da extinta União Soviética e cujas
conseqüências poderiam levar as superpotências a outra séria crise. Quem estava
certo, o governo ou o jornal? Óbvio que era o “Post”.
Recorde-se
que foi uma série de reportagens do "The Washington Post" que levou à
queda do presidente Richard Nixon, em 8 de agosto de 1974, que renunciou para
não ter seu "impeachment" aprovado pelo Capitólio, depois do caso de
espionagem ocorrido no edifício Watergate. São denúncias de tantos outros
jornais de renome daquele país que têm levantado a opinião pública mundial
contra os abusos cometidos por paranóicos sequiosos de poder, que violentam os
direitos humanos nas mais variadas formas e diversos lugares da Terra,
prendendo, expropriando bens, torturando, matando e difamando pessoas,
geralmente impotentes para se defenderem.
O que seria do mundo sem uma imprensa
livre? Os cidadãos sentir-se-iam inseguros até para sair de casa sem essa
tribuna para denunciar as mazelas e a prepotência dos que se valem do poder
público para promover interesses pessoais, a sociedade, inclusive, poderia até
mesmo se desorganizar com os indivíduos sentindo-se ameaçados em sua
integridade, criando leis próprias, calcadas apenas na força.
Não é mera coincidência o fato das
maiores atrocidades e genocídios acontecerem onde a atuação dos órgãos de
divulgação é restringida e controlada pelo Estado. Onde a imprensa é manietada
e amordaçada e impedida de exercer a sua missão de informar e alertar a opinião
pública. O mesmo meio com o qual se pode despertar a consciência das pessoas,
porém, se mal empregado, tende a alienar os cidadãos. A televisão, pela sua
instantaneidade, era, até não faz muito, veículo virtualmente imbatível em
termos de ser o primeiro a dar a notícia, antes do advento da internet. Hoje é
a rede mundial de computadores que é insuperável no quesito instantaneidade.
Esse poder fantástico implica também em uma responsabilidade proporcional, que
quase nunca fica clara a quem compete tratar do assunto.
O jornalista francês François Henri de
Virieu, num ensaio publicado pelo "Caderno de Sábado", do
"Jornal da Tarde", constatou: "...O sistema midiático, isto é, a
televisão e todas as redes por cabo, fibras ópticas, feixes hertzianos ou
satélites que fazem circular a informação, pesa cada vez mais em nossa vida
política e social. Ninguém comanda verdadeiramente este conjunto. Não há mais
cidadão Kane, pois as responsabilidades estão muito diluídas. Mas todas as
nossas instituições são afetadas por ela". E como são... Hoje em dia um
político não ganha mais eleições pela mensagem que emite, pelo programa de
governo que propõe, mas pela imagem que transmite em suas aparições na TV. Isto
ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos, com John Kennedy em relação a Richard
Nixon. E repetiu-se com Ronald Reagan em seu confronto com Jimmy Carter, com
George Bush (pai), com Bill Clinton, com George W. Bush e com Barak Obama.
A fartura de informação e, pior, além
de tudo truncada, tende a conduzir a opinião pública, cada vez mais
participante das decisões dos políticos, a terríveis equívocos na avaliação de
crises. O norte-americano Daniel J. Boorstin observou a esse respeito: "A
Revolução Russa de 1917 alimentou a euforia norte-americana com a deposição do
regime opressivo do czar e a ascensão do governo popular num vasto território.
O terror bolchevista e o regime totalitário stalinista que vieram depois
fizeram-nos repensar as coisas. Os acontecimentos de 1917 teriam sido apenas
uma guerra civil que substituiu os czares pelos 'comiczares'?"
Portanto,
é pertinente a crítica de Umberto Eco ao “sistema de celebridade”. Todos os
meios de comunicação, sem exceção, para merecerem esse título e não se
transformarem em meros panfletos ou porta-vozes de propaganda política do
partido “x”, “y” ou “z”, deveriam se limitar a noticiar, com absoluto rigor, o
que acontece, sem nenhuma concessão, mas sem fazer juízo de valor (função
exclusiva de leitores, ouvintes, telespectadores ou internautas, dependendo do
meio pelo qual as pessoas se informam). Não têm o direito de, proposital ou
acidentalmente, deliberada ou fortuitamente, serem notícia ou a induzirem a
acontecer. Credibilidade não se ganha de graça, mas se conquista no dia a dia.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Credibilidade se ganha no dia a dia, ou se perde num mau passo, e recuperá-la é missão impossível.
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