sexta-feira, 17 de julho de 2015

A inesquecível menina que roubava livros

O jovem escritor australiano (completou 40 anos de idade em 23 de junho de 2015), Markus Frank Zusak tornou-se best-seller mundial aos 30, quando lançou o seu então quarto romance “A menina que roubava livros”. Celebrizou-se nem tanto pelo enredo (que é excelente), mas, principalmente, pela “criação” de uma das personagens femininas que ninguém que tenha lido o livro esqueceu nem conseguirá esquecer. Bem, na verdade, ele propriamente não a “criou”. Baseou o perfil da fascinante protagonista em pessoa real, de carne e osso, que existiu (e que, aliás, foi a responsável por “sua” existência): sua mãe. Refiro-me a Liesel Meminger, criada por pais adotivos, depois que sua mãe biológica sepultou seu irmão caçula e resolveu, por motivo que não ficou muito claro, entregar a garotinha aos cuidados de outro casal, para evitar que tivesse o mesmo destino.

Tratei desse livro há alguns anos (foi lançado em 2005, mas no Brasil foi publicado apenas em 2007, pela Editora Intrínseca), em uma crônica, que não consegui localizar em meu caótico arquivo eletrônico. Portanto, que o leitor me perdoe se eu for repetitivo nestas considerações. Os mais mórbidos (que, convenhamos, não faltam) argumentarão que a personagem central do romance não é, propriamente, Liesel, mas a Morte, á qual Zusak empresta corpo e voz e faz dela a narradora da história. E eles estão (mas ao mesmo tempo não estão), certos. Afinal, óbvio, não foi o escritor que “criou” essa entidade (chamemo-la assim), que cumpre seu papel natural de renovadora de todas as espécies vivas, suprimindo os mais velhos ou mais frágeis de cada uma para dar espaço aos mais novos e mais fortes. Porém, ela é personagem do livro. E, por mais que a desejemos esquecer, ela sempre foi, é e será “inesquecível”. Mas... deixa pra lá!

É fato que o jovem escritor australiano inovou nesse aspecto. Nunca vi, em livro algum, de qualquer ficcionista, algo sequer parecido, ou seja, a Morte ser alçada à condição de personagem, como se fosse uma pessoa. Conforme Zusak, o romance nasceu quase que por “geração espontânea”. Ele cresceu ouvindo a mãe contar histórias da sua infância, numa Alemanha alinhada (salvo raras exceções) com o nazismo. Entre essas narrativas estavam as do bombardeio a Munique, as de judeus marchando pela pequena cidade em que ela morava rumo aos campos de concentração, onde a imensa maioria, literalmente, viraria cinzas e vai por aí afora. Embora horrorizado com o que ouvia, tinha íntima convicção que tudo aquilo eram coisas que queria um dia registrar em livro. E registrou, com talento e competência. A mãe sobreviveu à guerra e emigrou com o marido para a Austrália, onde Zusak nasceu e vive.

O primeiro livro que Liesel “roubou” foi no cemitério, onde o irmãozinho, recém-morto, estava sendo sepultado. Tecnicamente, nem se tratou de um roubo. A menina limitou-se a recolher do chão o tal livreto que havia caído do bolso do coveiro. Mas não o devolveu ao dono. Guardou-o para ter uma lembrança do irmãozinho morto, porquanto sequer ainda sabia ler. Aos poucos, todavia, foi aprendendo a juntar as letras, em identificar as palavras e em decifrar o conteúdo dos livros. E foi incorporando esses “tesouros”, mais e mais, ao seu acervo pessoal. O fato de “roubá-los” emprestava-lhe emoção especial e funcionava mais como uma espécie de catarse para os horrores que testemunhava e que não compreendia muito bem.

A mãe adotiva da menina é apresentada como mulher rabugenta, resmungona e rigorosa. Todavia... em momentos especiais, quando as circunstâncias assim exigiam, revelava-se, na verdade, dotada de um “coração de manteiga”: compreensiva e observadora. Liesel vivia em uma casa pobre e a família que a abrigou enfrentava muitas dificuldades, como ademais todas as pessoas simples, daqueles “tempos bicudos”, tinham que tentar superar no interior da Alemanha. O pai adotivo, pintor de paredes e músico nas horas vagas, era uma espécie de herói silencioso para a menina. Era amoroso, amável e admirado por ela.

O escritor Leandro Borges, resenhando o livro de Zusak, observa a certa altura: “A situação é triste: as dificuldades da vida de uma criança pobre que não entende como as coisas são. Então sonha com um mundo, vive em outro (na maioria das vezes, cruel), e tenta agir de alguma forma entre os dois”. Uma das passagens do livro que mais se fixaram em minha mente, é a do bombardeio da cidadezinha em que Liesel morava por parte da aviação aliada. Diversas pessoas reuniram-se no porão de uma casa para se protegerem das bombas. Todas, claro, estavam com muito medo, apavoradas, sem quase poderem se controlar.

Agarravam-se, umas às outras e ao que consideravam seus bens mais preciosos, como se fosse possível protegê-los.  O ruído das explosões era ensurdecedor. As crianças choravam aterrorizadas e em desespero. O ambiente era de pânico e de caos. Foi então que Liesel começou a ler, em voz alta, um de seus livros, como se nada estivesse acontecendo. Zusak narra assim esse episódio: “Durante pelo menos vinte minutos foi entregando a história. As crianças menores se acalmaram com sua voz, enquanto todos os outros tinham visões do assobiador fugindo da cena do crime. Não Liesel. A menina que roubava livros via apenas a mecânica das palavras – seus corpos presos ao papel, achatados para lhe permitir caminhar sobre eles”.

Que magnífico é não só esse trecho, mas todo o romance desse jovem escritor!!! Não por acaso, já há, até, quem fale num possível Prêmio Nobel de Literatura para Markus Zusak. Se lhe for outorgado, estará em muito boas mãos, sem qualquer exagero.  Como esquecer uma narrativa tão brilhante e poética de um assunto que na verdade é escabroso e trágico, tanto que é feita pela “Morte”?! Como esquecer personagem feminina, como esta, como Liesel Meminger que, ademais, tinha paixão por algo que, para nós, que vivemos de Literatura, é uma espécie de “Santo Graal”?!!!

Boa leitura.

O Editor.

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