Caça às pacas
* Por
Urbano Duarte
O meu vizinho Gustavo
não gosta de teatros, nem de pagodeiras, nem de comes e bebes. O seu supremo e
único prazer consiste em caçar pacas.
Aos domingos e dias
feriados, invariavelmente, ele sai de casa pela madrugada, com botas, chapéu de
lebre, sacola ao lado, espingarda embrulhada e acompanhado por dois cães
atrelados.
E vai-se por esse
recôncavo da Guanabara à porfia das pacas.
Tudo pega.
Eu raciocinava assim:
se esse homem acha prazer tão grande em matar pacas, é porque deve ser coisa
boa.
E veio-me um desejo
enorme de experimentar a nova emoção. Nesta vida cumpre aproveitarmos os gozos
que se nos deparam, para compensar os pesares que aparecem sem ser chamados.
Manifestei a minha
vontade ao Gustavo. Ele acolheu-a sem alacridade, exclamando:
- Amanhã mesmo vamos
caçar no Buriti!
- Há lá muita caça?
- Paca ali é mato!
Apronte-se. Partiremos às 4 da manhã.
No dia seguinte,
domingo, antes do raiar da aurora, embarcávamos ambos, e mais os dois cães, em
um carro da Estrada de Ferro do Norte, na estação de S. Francisco Xavier.
Eu tinha tomado por
empréstimo um par de botas de montaria a um amigo que calçava o n. 39, sendo 41
o meu ponto.
A princípio, as botas
me couberam perfeitamente, como uma luva; o calçado apertado é traiçoeiro, só
começa a nos martirizar o pé tempos depois, quando menos o esperamos.
Foi o que me sucedeu.
Os canhões de couro, sem elástico, puseram-se a magoar-me o ossinho do artelho,
justamente quando o Gustavo, risonho o influído, me narrava as suas proezas
venatórias por aquelas redondezas.
O vagão era em feitio
de bonde.
No momento em que o
trem, nas alturas da Penha, fazia uma curva, recebemos em cheio um violento
golpe de vento vindo do mar.
Os nossos chapéus
voaram.
O meu companheiro, um
tanto aborrecido com aquele incidente inesperado, recuperou logo a sua
jovialidade, e disse: - Isso não é nada! Arranjaremos outros chapéus.
- Contanto que a caça
seja boa, o mais pouco importa retorqui eu, fingindo não me incomodar com o
contratempo.
- Afirmo-lhe que hoje
jantaremos paca assada!
- Pois então vai tudo
bem.
Descemos na estação do
Atura, onde só há duas ou três choupanas.
O Gustavo procedeu a
uma rápida pesquisa, a ver se descobria dois chapéus velhos. Voltou desenganado
e triste. Os habitantes tinham saído.
- E agora? O sol já
queima...
- Ora adeus!-
articulei com gesto despachado e resoluto. - Você não tem expediente. Tenho
aqui os jornais do dia. Arranjemos dois chapéus armados e está salva a pátria!
E com as folhas
confeccionamos os chapéus armados.
- E então?
Parecemo-nos com os generais Robert e Kitchner à caça dos boêres...
O Gustavo, pequeno de
estatura, colocou o seu transversalmente, à moda de Bonaparte, e metido nas
enormes botas apresentava figura assaz ratônica.
Crismei-o de
"Napoleão das pacas".
Entretanto, cada vez
me doíam mais os pés, sob a pressão do couro.
Perguntei: Quanto
dista daqui ao rio Buriti?
- Meia légua, se
tanto...
- Oh! com seiscentos!
Neste caso vou tirar as botas.
- Não faça isso -
contestou o Gustavo. - Há muito espinho e muita cobra. Andemos devagarinho. Não
temos pressa.
Os raios solares nos
castigavam o rosto, incompletamente abrigados pelos improvisados cobre-cabeças.
De repente o Gustavo disse:
- Ah! tenho uma boa
idéia. Transformemos estes chapéus armados em toucas de irmãs de caridade. Têm
abas mais largas.
Sentando-se ao meio da
estrada, deu umas tantas dobras nas gazetas e as transformou em andorinhas das
usadas pelas religiosas de S. Vicente de Paula.
Seguimos caminho.
Os bois olhavam para
nós com espanto; os burros empinavam as orelhas e fugiam à disparada.
- Contanto que matemos
caça... (dizia eu) tudo vai bem.
- Havemos de jantar
hoje paca assada garantiu-me o Gustavo pela décima vez.
Chegamos finalmente ao
riacho Buriti. Gustavo lá encontrou o seu canoeiro. Soltou os cães. Nós
entramos para o batel.
- Sente-se no centro a
canoa e não se mexa. Qualquer movimento em falso faz virar a canoa.
Obedeci à
determinação.
De sorte que desde às
nove da manhã até às duas da tarde, cinco longas horas, permaneci de cócoras ao
fundo da canoa, os pés em fogo, na cabeça a touca de irmã de caridade,
espingarda em punho, à espera que a paca, acossada pelos cães, viesse atirar-se
ao rio.
Nem sombra!
Quando, não podendo
mais, eu bolia com o corpo, o canoeiro gritava: Não se mexa, patrão!
À volta, resolvi vir
sem chapéu. Caminhava dois minutos e descansava cinco.
E à noite, em casa,
para descalçar as malditas botas, foi necessário escorar-me à parede e pedir o
auxílio de toda a família.
(Apud João Ribeiro,
Páginas escolhidas, tomo II, 1906.)
*
Escritor, jornalista e humorista, membro fundador da Academia Brasileira de Letras.
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