segunda-feira, 6 de junho de 2011







Pula não, Firmino, que a vida vai mudar

* Por Eduardo Murta

Há uma silhueta deslizando às vigas do prédio em esqueleto da Avenida Brasil, naquela manhã de maio. Vira contraste ao azul que doma o céu por inteiro na transição silenciosa para o inverno. Mais ainda ao vermelho das viaturas de bombeiros que se agrupam ao pé do edifício. Querem se antecipar à tragédia que se desenha ali. Um desesperado sem nome, nos beirais do vigésimo oitavo andar.
Do ponto de observação, ao binóculo, o sargento nota os gestos de quem discute, negocia, faz tratativas. Braços magros, alongados, o homem leva um celular colado ao ouvido. Não teria mais que 20 anos. Rosto menino. E um diálogo que alternava pedidos de misericórdia, mansos, e explosões de fúria. O policial é capaz de tocar as letras que relampejam em sua boca, uma, duas, três vezes: “Eu vou pular, eu vou pular, eu vou pular!!...”
Da borda de cá da avenida, fecha os olhos por um instante. Não pretendia testemunhar desatinos. E volta a mirada em giro gradativo, pra respirar fundo, em seguida. O candidato a suicida permanecia imóvel. Um sopro, e seria uma pluma cortando os vazios do Santa Efigênia. Louvados, então, fossem os ventos daquele outono, porque eram incensados pela brandura. Sequer faziam ondular a cabeleira do desconhecido. A ele o sargento chamará, por esperança, de Firmino. Era nome do tio hipocondríaco que anunciava a morte a cada início de semana. Acabara condenado a viver até os 108 anos. Lúcido e são.
A história deste Firmino começa no oitavo banco da esquerda, assento do canto, no ônibus empoeirado que ligava os fundões de Ribeirão das Neves a Belo Horizonte. Unhas ainda com o ranço da massa de cimento, o servente de pedreiro se aborboletava por ali. À janela, a que fosse namorando paisagens e circunstâncias. Era lá, naquele sacolejo sem fim, que garimpava inspirações para o livro. As páginas se avolumando e ele deixando transbordar a bacia de sonhos.
O Morro da Urca, onde se pagava promessa para estar vivo no dia seguinte, em troca das miragens de uma Miami que ele conhecera pela tevê. As palmeiras fazendo molduras às alamedas. O mar em visita generosa. Aposentar a marmita - a abóbora como artigo requintado - e introduzir canapés finos à beira do piscinão nos condomínios de bacanas. Mulheres, muitas e belas mulheres. Champanhe a qualquer segunda à tarde, carrões e helicóptero.
E arremataria, só para ter o gosto de incendiar depois, a linha completa dos coletivos BH-Neves, num grená de enjoar. Era ele ali, nesta sexta-feira, descendo feito boi tocado num dos pontos da Avenida Santos Dumont. Na esquina seguinte, amaldiçoou o mundo. Desacelerou movimentos, como tombasse num vão. Largara os originais de seu romance para trás!!! Santo Cristo!!! Seu futuro, sua fortuna. Charutos e vinhos franceses banidos para sempre! Foi que o celular tocou, já na obra, Firmino assentando tijolos num desalinho de dar dó.
Era voz de mulher. Dessas cautelosas, que estudam até o termo ideal de usar. Ele fez bambear os joelhos, até soltou grito de gol, à revelação de que ela encontrara os papéis. Abriu-se, elencou todos os planos. Festejou, mas foi esbranquiçando às exigências do outro lado da linha. Ou mudava o rumo dos personagens, porque ela, Vilma, desaprovara, ou tudo se converteria num amontoado de cinzas. É ele, então, agora, se descabelando ao topo do edifício. Ameaçando se jogar, daí morreriam com ele protagonistas e vilões... Mas era capaz de se render a mínimas concessões.
Vá lá, a filha da costureira fará par com o advogado milionário, mas daí a exigir que a madame se curve às cantadas do açougueiro era pedir além da conta. Firmino cedeu aqui, acolá, até obter a promessa de devolução do calhamaço, dia seguinte, na Praça Raul Soares. Mas que fosse com documento em cartório assegurando as mudanças, ela exigiu. Ele desarmou o espírito, autorizou a subida dos bombeiros. Se deixou resgatar.
Contou sua história ali mesmo. À porta da van de socorro, enfeitou detalhes às rádios, jornais e tevês. Virou rede nacional. Uma editora já o aguardava, quando buscou os originais. Ele agora sorri largo para Vilma, pasteleira da Rua Guarani que entraria em sua vida por uma ponta de quase tragédia. Não fosse por ela, não estariam arquitetando, à beira do piscinão desse condomínio bacana de Miami, os próximos passos. Palestras pagas em dólares e livros de autoajuda para vender aos milhares: "Como transformar o dia a dia num ônibus lotado em porta para o sucesso absoluto". Já podiam planejar até a troca de helicóptero.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

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