sábado, 7 de maio de 2011



Dois escritores de um só Portugal

* Por Luiz Carlos Monteiro

Autores portugueses contemporâneos têm sido publicados com relativa frequência pelos editores brasileiros. Em versão originalmente lusitana ou local, trabalhos de prosa e poesia são expostos e vendidos em livrarias com maior ou menor profusão. Já se pode ler com alguma facilidade romancistas consagrados do porte de um José Saramago, um José Cardoso Pires, um António Lobo Antunes ou poetas expressivos como Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Mário de Sá-Carneiro, Herberto Hélder. Fazendo parte de gerações mais recentes, dois autores ainda pouco conhecidos no Brasil, tiveram seus livros de ficção lançados agora por aqui, favorecendo, embora que modestamente, o intercâmbio frágil entre as duas literaturas, mesmo com o esforço secular que vem sendo empreendido por gente de lá e de cá.
Inês Pedrosa, escritora com mais de dez livros de ficção e ensaio publicados e jornalista em plena atuação, chega com o romance A eternidade e o desejo, resultante de uma viagem ao Brasil onde refez o percurso realizado anteriormente pelo padre António Vieira. Sob a influência confessa de Vieira, todos os capítulos são intercalados por citações em negrito do famoso padre. José Luís Peixoto, que assumiu integralmente a função de escritor, em detrimento do magistério, já foi traduzido para mais de uma dezena de idiomas e contemplado pelo prêmio José Saramago de 2001 com o romance do Alentejo rural Nenhum olhar, publicado no Brasil em 2005. Cemitério de pianos é o seu segundo livro por editora local e traz como elemento deflagrador um fato verdadeiro, a morte do atleta português Francisco Lázaro em 1912, numa maratona mundial em Estocolmo.
Do ponto de vista estético, não há praticamente nenhuma identificação literária entre ambos nos dois trabalhos, sendo seus interesses ficcionais ostensivamente díspares e as diferenças de concepção e realização mais flagrantes ainda. No livro de Inês Pedrosa o leitor pode, enviesadamente, optar pela leitura das numerosas citações em negrito de Vieira, pela narrativa da própria Inês, ou pela junção de ambos, Inês e Vieira. A romancista assumiu o risco da paródia e da paráfrase, ao tangenciar o estilo e diluir o seu próprio no de Vieira, envolvendo-se dele até a medula. A cegueira da personagem central Clara, provocada por um episódio trágico em que tentou salvar o amante António na Bahia, de tiros que terminaram por atingi-la no nervo óptico, traz a lume a sua forte paixão e o seu amor pelo professor universitário morto na ocasião.
Clara mergulha no estudo e na dissecação das cartas e sermões do padre, empreende uma nova viagem à Bahia com um amigo, Sebastião, interlocutor mais constante, que a ama sem esperanças, e vive novas peripécias amorosas com o cineasta Emanuel. Tudo isso talvez como compensação para a cegueira que a assola, embora passe a desenvolver novas formas de estar no mundo. Recorre, por exemplo, ao recurso de decifrar vozes, ruídos e silêncios ao redor para reconhecer melhor os acontecimentos exteriores. O que se torna uma espécie de idiossincrasia repetida ao extremo no livro, como se somente a existência de vozes atenuasse a falta de visão em meio à impermeabilidade de trevas e silêncio. Apela ainda para o mergulho solitário, profundo e rico no seu mundo particular. E daí surgem as reflexões mais consequentes e irreverentes que as oscilações e vertentes de seu pensamento estético, político e feminista sugerem.
Observa-se uma compulsão para o orgulho, na recusa da “pena” e do oferecimento de “ajuda” dos outros, com a manutenção de uma independência que, obviamente, não poderá funcionar em todos os momentos. A vaidade, herdada de Vieira, como a personagem esclarece, situa-se no futuro e se reafirma como a mola propulsora do clérigo para enfrentar ofensas, censuras, achaques e perseguições, apesar de sua ligação com a monarquia colonizadora lusa. Uma vaidade impiedosa e infalível, ele mesmo o sabia, que o transportaria ao coração do futuro unicamente pela força de suas palavras em sermões e outros escritos, que lograram ultrapassar quatro séculos.
Dos brasileiros citados, destaca-se o registro da poesia seminal e charmosamente angustiada de Ana Cristina César num poema de seu livro mais conhecido, A teus pés (aliás, há uma coincidência flagrante do título desse livro com outro de Inês Pedrosa, no gênero ficção, o premiado Nas tuas mãos). Um momento alto do livro se revela como um toque feminista da autora quando fala da irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, composta por mulheres negras baianas desde 1820, para, à época, angariar fundos a fim de alforriar aqueles escravos que não dispunham de dinheiro.
O discurso é antifreyriano na visada do caldeamento racial brasileiro, chamando a atenção para a tremenda carga de sofrimento e desumanidade imposta aos negros, renegando estupros e abusos sexuais como meios de miscigenação e amorenamento: “Quando se fala da doçura particular da colonização portuguesa, da miscigenação e da invenção do mulato e não sei que mais, esquece-se a realidade da escravatura: jornadas de trabalho de dezoito horas, ao sol, na agricultura, mutilações – os fugitivos e fugitivas eram punidos através do corte dos tendões –, os grilhões, as queimaduras com ferro em brasa no rosto, os açoites de chibata. (...) Desprezamos o sofrimento de milhares de pessoas que viveram neste Inferno, subjugadas pelos gloriosos civilizadores do Brasil, desprezamo-los tanto que até a instituição do abuso sexual das escravas pelos senhores brancos passa, ainda hoje, por benemérita criação de uma raça nova”.
Ao fim, Vieira é deixado um pouco de lado, e o roteiro histórico, intelectual e turístico de Clara rende-se à sensualidade e ao ludismo de seu novo parceiro baiano. Isto se aplica a “Desejo”, segundo bloco do livro, que finaliza com uma declaração erótica ao personagem Emanuel, lasciva e despudorada, restaurando a vida dos sentidos em Clara, que intenta substituir a visão pela voz, pelos sons, pelo tateio e pelos torneios sexuais que não necessitam dos olhos para se consumarem. Se assim acontece com o desejo, a eternidade proposta por Inês Pedrosa se perde com frequência na ideia subtropical de uma Bahia sempre festiva, turistizada ao máximo pela intersecção de um passado-presente de “talha dourada” e ritos não mais clandestinos como o candomblé folclorizado e midiático.
A prosa romanesca de José Luís Peixoto em Cemitério de pianos acompanha de perto o que se emerge das feridas abertas pela vida e a morte em um núcleo familiar modesto e tradicional português, contudo rico de acontecimentos inusitados. Todos giram em torno da funcionalidade precária de uma carpintaria, que vai sendo herdada pelas gerações sucessivas dos que se chamam Francisco Lázaro. E giram também sob o crivo da autoridade paterna, sustentada na ancestralidade de países que, como Portugal, estão arraigados a um rosário infindável de tradições às vezes inabaláveis, determinantes do comportamento individual de pessoas e grupos. Mesmo os casamentos falidos podem continuar a ser sustentados na aceitação de um cotidiano que se perfaz preferencialmente nos atributos e circunstâncias de cama e mesa, de conforto familiar e dietas abundantes em verduras, peixes e vinhos. Algumas mulheres aparecem em plano secundário como sombras, sem nome, volatilizadas no tempo e no espaço.
Sem esconder sua tendência intimista e confessional, José Luís avança, opostamente, para um despojamento da linguagem ao mesmo tempo veloz e contido. Trabalha no sentido de coordenar o disperso e de estabelecer elos entre o fragmentário e o que já estava prestes a ser descartado como inútil. Não há como evitar, no entanto, certo paradoxo provocado por um excesso realístico na descrição de coisas e objetos que se interpõem nos espaços e ambientações escolhidas. De outra parte, o mundo de fora inexiste nas explicitações da política e da economia, da história e da mínima demarcação cronológica. Apenas o registro da maratona na Suécia sugere o contexto histórico imediato e anterior, sob o ponto de vista do esporte. Meses e dias da semana são nomeados mas não-datados, soltos no túnel obscuro do tempo. Nesta trama genética, o conjunto de pessoas que dela participam, guardam o passado nos acontecimentos ora conflitantes ora temporariamente felizes de suas vidas: os instantes de enlevo amoroso e de trégua no ambiente familiar, contrapõem-se a acidentes corriqueiros e violentos com o peso da culpa que trazem.
A impetuosidade e a inclinação maratonista de corredor do segundo Francisco Lázaro imprime um ritmo cadenciado a seus pensamentos, vez por outra desordenados, através dos seus passos em aceleração que se dirigem ao nada, à morte por insolação. Lázaro recorda fatos e momentos marcantes de sua saga familiar e amorosa. Antes da maratona sueca, aplica uma estranha mistura de graxa e óleo no corpo. Os outros corredores acham esquisita a sua pele artificialmente acastanhada, aquela mistura fatídica que o fará receber mais intensamente o sol em seu corpo, esquentando-o a uma temperatura insuportável. Na medida em que os quilômetros se sucedem, ele vai sentindo mais próxima a presença da morte.
Há um cruzamento entre a sua morte e o nascimento do seu primeiro filho, o terceiro Francisco Lázaro, que funciona também como narrador-personagem. Isto remonta ao início do livro, onde se vê o patriarca em um hospital, o primeiro Francisco Lázaro, à espera da morte, separado dos outros doentes por esta circunstância, acontecimento entrecruzado pelo nascimento de seu neto Hermes, filho de Marta, uma hora antes. É de uma tragicidade cômica e de uma crueldade a toda prova o momento de tensão extrema em que os parentes são convocados a irem para casa e a aguardarem o telefonema noticiando a morte do patriarca: “Foram para a casa da Maria e cada um ficou abandonado num canto dentro do sofrimento. Longe, protegida, a Ana tinha dois anos e estava na casa dos avós ao lado do pai. Desprotegidos, a minha mulher, a Maria e o Francisco esperavam que o telefone tocasse. Esperavam que telefonassem do hospital com a notícia de que eu tinha morrido. Foi assim que a enfermeira disse: – Em princípio, telefonamos ainda hoje. Telefonamos logo que o seu marido falecer”.
José Luís Peixoto paga um alto tributo à instituição familiar pela visão estreita de seus afetos e desencontros comezinhos, e que poderia se mostrar, em medida considerável, um microcosmo definidor do corpus social. O escritor não promove, por exemplo, uma visão de conjunto centrada na condição do país enquanto aglomerado humano e sociocultural de numerosos interesses, conflitos ou identificações necessárias. O seu enfoque produz um microuniverso familiar partilhado apenas por aqueles que são próximos pelos laços de sangue, insensivelmente fechado aos de fora. Ao lado de relações rudes, polêmicas e problemáticas, se salva somente a afeição comum pelas crianças, uma qualidade de todos os componentes do núcleo, que afasta temporariamente as discórdias de memória recente.
Na oficina, há uma parte de seu galpão transformada em antigo depósito de pianos, onde existem peças e mecanismos para todos os tipos de consertos. É um reino escuro e subterrâneo que serve como palco para o desenredo de cenas e situações como o encontro de corpos ávidos por sexo, a leitura de romances açucarados por Maria, a descoberta lenta e privilegiada de uma memória familiar pelo terceiro Francisco Lázaro. A narrativa de José Luís produz, a partir desse cemitério peculiar, um espólio metafórico que desamarra as notas dispersas e saltitantes dos instrumentos em utilização ou conserto. O que tem como resultado uma espécie de criação artística responsável pela vinculação, no texto ficcional, do silêncio espectral e áspero de pausas e entrelinhas à ressonância fonética de uma artesania que valida, através da escrita, a harmonia e os sentimentos conflituosos de uma comunidade humana efêmera, vilipendiada e em decomposição, mas em busca permanente de seu equilíbrio.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

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