segunda-feira, 11 de outubro de 2010


O não-pensamento


A possibilidade de pensar é das prerrogativas mais nobres que temos e, ao mesmo tempo, é um dever usá-la com competência e correção. Pensamos, via de regra, sempre tendo em vista alguma ação, positiva ou negativa, boa ou má (não importa) que pode ocorrer ou não. Há, porém, pensamentos de todos os tipos: superficiais ou profundos, articulados ou difusos, sadios ou doentios, coerentes ou incoerentes etc.etc.etc. Mas em momento algum, mesmo que inconscientes, deixamos de tê-los.

Recordo-me da última vez que fui anestesiado (isso há muito tempo) para ser submetido a uma cirurgia. Lembro-me de tudo o que pensei na ocasião, antes de tomar a anestesia, durante o período que durou seu efeito e depois que este passou. Claro que nem todos os pensamentos então foram coerentes e muito menos voltados para a ação. A maioria não foi. Mas eles existiram e estiveram o tempo todo na minha cabeça, mesmo sob o efeito do potente anestésico.

Surge-me, pois a pergunta: existe o que possa ser denominado de “não-pensamento”? Há algum momento não somente do dia, mas da vida, em que não pensamos rigorosamente em nada, em que nossa mente se torne uma tela branca, imaculada, sem nenhuma, absolutamente nenhuma imagem, raciocínio, lembrança, vontade ou seja lá o que for? Entendo que não! Mesmo dormindo, estamos o tempo todo pensando. O sonho é uma forma de pensamento. Nossa mente, a exemplo do coração, trabalha 24 horas por dia, ininterruptamente, e todos os dias da nossa vida.

O mentalmente insano pode não pensar de forma coerente e ordenada, mas pensa, posto que doentiamente. Tente “limpar” a mente, não pensar rigorosa e absolutamente em nada. Tentou? Conseguiu? Claro que não! Isso está além da sua vontade, da minha, da nossa ou de quem quer que seja.

Quem tem o saudável hábito da meditação sabe do drama que é tentar se concentrar em uma única e específica idéia, tantos são os pensamentos que temos ininterruptamente. Um dia ele consegue, mas apenas com muito treino, com muito exercício e, mesmo assim, volta e meia, acaba por se distrair. Há dias que, por mais disciplinado e experiente que alguém seja, não consegue se concentrar num único foco, num pensamento específico. Tudo ao seu redor o distrai.

Trouxe o tema à baila depois de ler, no livro “A Imortalidade”, de Milan Kundera, esta afirmação: “Nada na realidade exige mais esforço do pensamento do que a argumentação necessária para justificar o não-pensamento”. Foi quando me indaguei: “existe esse tal de não-pensamento, esse estado de rigoroso torpor da mente em que não se pensa em absolutamente coisa alguma?”. Concluí que não!!! Houve um equívoco, pois, do ilustre escritor checo. Ele quis referir-se ao pensamento inespecífico, vago, sem forma e sem análise, mas ainda assim pensamento. O não-pensamento não existe!!!

Tanto esta minha conclusão é verdadeira, que Kundera escreve, na sequência: “Pude constatar isso pessoalmente depois da guerra, quando os intelectuais e artistas entraram como bezerros para o partido comunista, que depois, com o maior prazer, liquidou-os sistematicamente”. Neste caso, a referida adesão deu-se por falta de análise das possíveis conseqüências, não por ausência de pensamentos. Pensar esses intelectuais e artistas até que pensaram. Só que pensaram errado, não mediram as conseqüências das ações derivadas desse raciocínio afoito (e provavelmente oportunista).

A propósito da meditação, Bhagvan Shree Rajneesh, em seu "O Livro Orange", dá preciosa orientação sobre como meditar: "Na meditação você está fazendo nada em particular, está simplesmente sendo. A meditação não tem passado, não está contaminada pelo passado. Não tem futuro, está limpa de qualquer futuro. É o que Lao Tzu chama de we-wu-wei, ação através da não-ação. É o que os Mestres Zen têm dito: sentando-se em silêncio, sem fazer nada, a primavera vem, a grama cresce por si mesma. Lembre-se: por si mesma – nada é feito. Você não puxa a grama para cima; a primavera vem e a grama cresce por si mesma. Esse estado – no qual você permite que a vida siga seu próprio caminho, sem querer dirigi-la, sem querer controlá-la, sem a manipular, sem lhe impor nenhuma disciplina – esse estado de pura e indisciplinada espontaneidade é meditação".

Há, é verdade os que não “querem” pensar, aferrados a pensamentos alheios, que colocam como dogmas. Não é que não pensem. Pensam, sim, e muito, e o tempo todo, posto que à revelia. O que não sabem é disciplinar os pensamentos e orientá-los para rumos corretos. Por isso, via de regra, agem de forma incompetente, negativa e desastrada. São os fanáticos, que impedem, com sua falta de visão, o progresso dos povos.

Há, por outro lado, os que não “podem” pensar com clareza e lucidez, por deficiência mental. Mas, ainda assim, pensam. São os loucos e idiotas, que não têm culpa desses males. Mas não “ousar” pensar de forma coerente, ordenada e lúcida é o delito dos delitos. Significa omissão. E o omisso é um parasita, que sempre depende que outros façam o que lhe caberia fazer.

Um dos maiores cuidados que devemos ter na vida, pois, se refere ao teor e à qualidade dos pensamentos. Eles são, reitero, as matérias-primas, os gatilhos, os deflagradores das ações. Mesmo que não venhamos a nos dar conta, somos, de fato, o que pensamos. Se pensarmos que somos infelizes, coitadinhos e fracos, por exemplo, assim seremos. Se nutrirmos pensamentos negativos, de mágoas, ressentimentos, ciúmes e vinganças, estaremos apostando na infelicidade. E seremos infelizes. Por isso, o mais inteligente e produtivo é preenchemos, e o tempo todo, nossa mente com idéias positivas, construtivas e sadias, mediante conversações que nos acrescentem algo e nos melhorem; leituras selecionadas e... meditação constante.

Contudo, achar que exista o “não-pensamento” – como Milan Kundera (erroneamente) caracterizou o pensamento afoito, sem fundamento ou análise – é enorme bobagem. O pensador budista Pali Tripitaki lembra: “O que somos hoje é uma conseqüência do nosso pensamento de ontem, e o nosso pensamento presente constrói a nossa vida de amanhã: a nossa vida é uma criação do nosso espírito”. Assim, se não pensássemos... não existiríamos...

Boa leitura.

O Editor.

Um comentário:

  1. Faço treinamento de escolher o que pensar há mais de vinte anos. Exige muito controle, e ainda assim consigo fazê-lo muitas vezes. Levo ao pé da letra a ideia: Sentimos o que pensamos e pensamos o que queremos. É fato. Agora, conseguir não pensar em nada, é bem mais difícil/impossível. Quando busco o sono, penso numa parede branca com um pontinho preto, até o sono vir. Mesmo assim não estou sem pensamentos.

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