segunda-feira, 1 de maio de 2017

Escritor ou “filósofo com visão de profeta”?


No dia 21 de abril do ano da graça de 2010, quando nossas atenções estavam todas voltadas para o cinqüentenário de Brasília, completaram-se cem anos da morte de um escritor que, na definição do jornal “San Francisco Call” (feita naquela ocasião) era “um profundo filósofo, com a visão de um profeta”. Referia-se ao (também) jornalista Samuel Langhorne Clemens que ficou conhecido no mundo das letras com o pseudônimo de Mark Twain e que, para William Faulkner, foi o “pai da literatura norte-americana”. Se foi mesmo, ou não, é questão para se discutir. O indiscutível é que se tratou de um dos maiores escritores do seu e de todos os tempos.

Escrevi muito a seu respeito, em crônicas e, sobretudo, ensaios. Tudo o que disser sobre ele, portanto, não será novidade para meus leitores mais antigos, embora o seja para os novos. Por isso, não tenho o menor pudor em ser repetitivo ao reverenciar essa figura um tanto controvertida para muitos, mas, sem dúvida, fascinante, e sua obra aparentemente voltada para uma faixa etária específica, a dos adolescentes, mas que só entendemos e damos o devido valor ao atingirmos a maturidade.

Isso vale tanto para “As aventuras de Tom Sawyer” e sua seqüência “Huckleberry Finn”, quanto para “O príncipe e o mendigo”, entre os tantos dos seus livros, sendo este último o meu preferido. Por que? Por suscitar reflexões sobre o poder, a riqueza e a pobreza, o acaso, as circunstâncias e o comportamento das pessoas em situações extremas de vida.

Trata-se, a meu ver, de um livro alegórico, de enredo sumamente improvável, mas que o talento de Mark Twain, com seu estilo coloquial de narrar tornou verossímil. A tal ponto que chegamos a nos esquecer, se não da sua impossibilidade (costumo pensar duas vezes antes de afirmar que algo é impossível), sua improbabilidade.

O príncipe e o mendigo”, resumindo em poucas palavras, é a história de dois irmãos gêmeos, separados no nascimento, com um sendo criado num palácio real, com todas as regalias e luxos da realeza, preparado para um dia assumir o trono e outro criado nas ruas, por indigentes, sobrevivendo quase que por milagre.

Um dia, por uma dessas casualidades incomuns, mas que às vezes surpreendentemente ocorrem, ambos se encontram. Conversam, falam de suas respectivas vidas, percebem suas semelhanças físicas embora sem atinar que sejam irmãos e desfiam suas respectivas queixas. Os dois sentem-se insatisfeitos, por motivos bem diferentes, com suas situações.

O príncipe, por exemplo, sentia-se entediado no palácio real e sonhava com liberdade, com a amplidão do mundo, com mil e uma aventuras. O mendigo, óbvio, não suportava a miséria, a sujeira, a ignorância e a violência que o cercavam e ameaçavam. Resolvem, pois, trocar de posição. Eram tão iguais, que ninguém notaria.

Ao cabo de algum tempo, todavia, cada qual anseia por retornar à situação anterior. O príncipe sentiu na carne o que é ser miserável e ter que batalhar, não raro, por reles pedaço de pão amanhecido para comer. A lição, no entanto, lhe seria útil para quando assumisse o destino do seu povo. Com o conhecimento recém-adquirido, poderia ser compassivo e compreensivo com os mais pobres.

O mendigo entendeu, por sua vez, o valor da liberdade para tomar as próprias iniciativas. Além disso, compreendeu o quão fátuas e inúteis se tornam as pessoas quando “amolecidas” por excesso de luxo e o quanto são falsas as relações entre elas.

Parece uma história simples, banal, ingênua, dessas para serem contadas à noite ao pé da cama das crianças, para fazê-las dormir. E, de fato, é. Todavia, suscita inúmeras reflexões, sobretudo sobre a vida. Eu, pelo menos, aprendi muito com ela. Seu enredo, como seria de se esperar, foi levado aos palcos de teatro e às telas de cinema, com grande sucesso em ambos os casos.

Mark Twain nasceu em 30 de novembro de 1835, quando o cometa Halley começava a se aproximar da Terra e já podia ser visto por telescópios. E, coincidentemente, morreu quando ele começava a se afastar do nosso planeta, depois de proporcionar feérico e inesquecível espetáculo e despertar fascínio nos esclarecidos e terror nos ignorantes e supersticiosos, que entendiam que a sua passagem, com toda aquela “pompa e circunstância”, era o prenúncio do fim do mundo. Não era, evidentemente.

Escrevi uma crônica, a respeito, em 1986, quando da última passagem desse – fascinante para uns e assustador para muitos – corpo celeste, embora sem o brilho de 1910, que partilhei ontem com vocês. E encerrei o referido texto da mesma forma que encerro este. Ou seja, sugerindo que o gênio das letras do seu tempo, o “pai da literatura norte-americana”, o “profundo filósofo com visão de profeta”, chegou à Terra na cauda do Halley, que quase 76 anos depois voltou para buscá-lo e levá-lo para o infinito. E isso aconteceu há cento e sete anos...


Boa leitura!


O Editor.


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