sábado, 6 de maio de 2017

Caliente


* Por Flora Figueiredo


A orquestra atacou em ritmo de tango. 
Ela abriu a boca num sabor morango 
e rodopiou. 
Ele a enlaçou satisfeito, 
estufou o peito, 
tentou o passo. 
O bigodinho engomado, 
cheirando a brilhantina o cabelo empastado, 
uma decadência, um descompasso. 
(Às vezes solene, às vezes safado.) 
Ela equilibrou enquanto pôde 
a rosa no decote 
até que o som entrou em foxtrote 
e ela se descompôs: 
ressurgiu o brilho sob o pó-de-arroz 
e as rodas de carmim a colorir a face 
desbotaram-se até que nada mais restasse. 
Antes que a música mudasse novamente, 
ele insinuou-se num sorriso convincente, 
ela cedeu. 
Foram se beijar num canto escuro, 
com a lua enternecida por detrás do muro 
e sobre a rosa amanhecida o dia apareceu. 

* Poetisa, cronista, compositora e tradutora, autora de “O trem que traz a noite”, “Chão de vento”, “Calçada de verão”, “Limão Rosa”, “Amor a céu aberto” e “Florescência”; rima, ritmo e bom-humor são características da sua poesia. Deixa evidente sua intimidade com o mundo, abraçando o cotidiano com vitalidade e graça - às vezes romântica, às vezes irreverente e turbulenta. Sempre dentro de uma linguagem concisa e simples, plena de sutileza verbal, seus poemas são como um mergulho profundo nas águas da vida. 


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