A família
* Por José Calvino de
Andrade Lima
(...)
Chove. O escritor lembra de uma colega de infância que corria
embaixo da chuva, o vestido molhado colado no seu corpo lindo, os
seios aparecendo, a água penetrava por entre suas nádegas e coxas
robustas, que lhe revelavam a forma das calcinhas. O escritor tinha
seus treze anos, ela também, e ficavam brincando tomando banho
embaixo das biqueiras das casas. Era um tempo bom, tempo de infância.
Convivendo com a natureza, o cheiro da terra molhada exalando a
fragrância das rosas e dos jasmins, bebiam a água da chuva.
Abraçados, rolavam e com seus corpos juntos, riam e ela sentindo e
vendo o seu membro duro tocando-o no seu corpo. Reclamava, brincando.
Faziam bochecha d’água e jogavam um no outro, como também juntava
água da chuva com as palmas da mão e jogavam . Os pais empombando,
diziam:
-
Sai da chuva. Que menina danada!
-
Eu não quero você brincando com menino! Você já está uma moça!
O
escritor sabia que a sua idade já estava causando ciúmes aos pais
de suas colegas, os pelos de seu corpo já estavam crescendo, ficando
um homem! O cuidado que os pais têm com os filhos é normal, só que
eles esquecem que já foram crianças. Mas, se alguns não tiveram
oportunidades de brincar, não poderia fazer nada por eles! Iam ficar
sem deixar os seus filhos brincarem? A natureza tem seus mistérios e
o ser humano os seus caprichos. Agora, já com quarenta e seis anos e
perto dos cinquenta, não sabendo do paradeiro de algumas de suas
colegas, pensava: “será que elas lembram de mim?” Ora, talvez
até onde elas estivessem não chovesse naquele momento, mas a
lembrança faz parte da vida. O importante é que se casou com uma
delas, a filha do sargento.
No
outro dia, era dia de sol. O céu azul com poucas nuvens. Azul e
branco também era o vestido de suas colegas colegiais. Estudavam na
mesma classe, o escritor de farda cáqui com duas listras azuis nos
lados das pernas da calça. Ele e a filha do sargento iam conversando
sobre os deveres que fizeram à noite, com os pais brigando,
parecendo que eram irmãos: um casal de irmãos! Na classe, ela
jogava bilhetes de amor, cruzava as pernas a propósito e o escritor
observava as suas coxas pelo espelhinho redondo de bolso. A classe
era dividida: meninas à esquerda e meninos à direita. Os alunos se
levantavam ao entrar o professor de inglês (respeito aos mestres),
que dizia:
-
Sit down the boys, sir down the girls...
Toda
a aula era em inglês. No tempo do escritor ensinava-se Latim,
Francês e Inglês. Hoje, está tudo mudado, diferente. Não se
ensinam mais Latim e Francês: só Inglês!
Nos
campos, meninos a disputarem o “pega-tanajura” com tiras de panos
e galhos de mato, para que as tanajuras – nos seus vôos rasantes –
caíssem no chão mais depressa. Arrancavam as asas e jogavam-nas
numa vasilha, meia de água. Os mais espertos, homens e mulheres, iam
para o meio do mato onde se encontravam os grandes formigueiros.
Levavam bacias com água e ficavam com os pés dentro para evitar as
picadas das saúbas, que ficavam ao redor dos buracos. As tanajuras
ao saírem eram agarradas. Era esta uma das causas da demora do
aparecimento das tanajuras. Então, os meninos entravam logo nos
estribilhos:
Cai,
cai tanajura
Tua
bunda tem gordura.
Cai,
cai tanajura
Que
teu pai já morreu
E
tua mãe ta no Ibura.
-
Esse menino vai findar se casando com a filha do Sargento!
-
Nada, meu filho, eles são crianças ainda...
O
Sargento lia no jornal sobre o extermínio de crianças de rua,
aspirando a fumaça do seu cigarro. Ficava satisfeito em saber que os
seus filhos deram pra gente. A esposa lia um livro instrutivo e
sugeria ao marido dá-lo de presente ao colega de sua filha (o
escritor) um bom livro. Concordando, diziam:
-
Livro ainda é o melhor presente.
No
aniversário do escritor lhe fora dado o prometido livro. O escritor
é também telegrafista e ainda hoje guarda com carinho este
maravilhoso presente. A sua esposa fica emocionada. Sempre o escritor
lê em voz alta: “... Outras vezes o viajante lobriga ao longe,
rente ao caminho, uma ave branca pousada no topo dum aspeque.
Aproxima-se devagar ao chouto rítmico do cavalo; a ave esquisita não
dá sinais de vida; permanente imóvel (...) Não é ave, é um
objeto de louça... O progresso cigano, quando um dia levantou
acampamento dali, rumo Oeste esqueceu de levar consigo aquele
isolador de fios telegráficos... E lá ficará ele, atestando
mudamente uma grandeza morta (...)” (Monteiro Lobato, Cidades
mortas, São Paulo, 1957 – op. cit., p. 7)
Sempre
quando vão para as festas de aniversário levam um livro para
presentear ao aniversariante. Foram assim educados e este hábito
conservarão até o fim da vida. Que virtude daquele casal! Dizem os
que gostam de ler, como vocês.
O
escritor é casado com a filha do sargento e tem cinco filhos. Todos,
de maior. Três formados e dois estudantes do segundo grau. Todos os
personagens... O que poderá acontecer, iremos ver nos capítulos que
se seguem...
(
Capítulo 1 do livro “Aonde iremos nós?”, ed. do autor –
1983).
*
Escritor, poeta e teatrólogo. Fiteiro Cultural: Um blog cheio de
observações e reminiscências.
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