domingo, 11 de setembro de 2016

A invenção de Morel

* Por Adolfo Bioy Casares


(...) HOJE, nesta ilha, aconteceu um milagre. O verão adiantou-se. Coloquei a cama perto da piscina e fiquei tomando banho até muito tarde. Era impossível dormir. Dois ou três minutos fora bastavam para converter em suor a água que devia me proteger do calor inesperado. Pela madrugada, um gramofone despertou-me. Não pude voltar ao museu, a fim de buscar as coisas. Fugi pelos barrancos. Estou nos baixios do sul, entre plantas aquáticas, indignado por causa dos mosquitos, com o mar, ou córregos sujos, até a cintura vendo que antecipei absurdamente a minha fuga. Acho que essa gente não me veio procurar; talvez nem me tenham visto. Mas continuo o meu destino; estou desprovido de tudo, confinado ao lugar mais escasso, menos habitável da ilha; a pântanos, que o mar suprime uma vez por semana.

Escrevo isto para deixar testemunho do adverso milagre. Se dentro de poucos dias não morrer afogado, ou lutando pela minha liberdade, espero escrever a Defesa Perante Sobreviventes e um Elogio de Malthus. Atacarei, nessas páginas, os invasores das selvas e dos desertos; demonstrarei que o mundo, com o aperfeiçoamento das polícias, dos documentos, do jornalismo, da radiotelefonia, das alfândegas, torna irreparável qualquer erro da justiça, é um perfeito inferno para os perseguidos. Até agora, não pude escrever senão esta folha, que ontem não previa. Quantas ocupações há nesta ilha solitária! Como é insuperável a dureza da madeira! Quão maior é o espaço do que o pássaro movediço!

Um italiano, que vendia tapetes em Calcutá, foi quem me deu a idéia de vir para cá; disse-me (na sua língua):
— Para um perseguido, para o senhor, só há um lugar no mundo, mas nesse lugar não se vive. Ê uma ilha. Aproximadamente em 1924, estiveram lá brancos, construindo um museu, uma capela, uma piscina. As obras estão concluídas e abandonadas.

Interrompi-o, pedindo-lhe ajuda para a viagem; mas o mercador prosseguiu:
— Nem os piratas chineses, nem o barco pintado de branco do Instituto Rockfeller tocam nela. É foco de uma enfermidade, ainda misteriosa, que mata de fora para dentro. Caem as unhas e o cabelo, a pele e as córneas morrem e o corpo só resiste de oito a quinze dias. Os tripulantes de um vapor que tinha fundeado na ilha estavam pelados, calvos, sem unhas — e todos mortos — quando foram encontrados pelo cruzador japonês Namura. O vapor foi afundado a canhonaços.

Mas a minha vida era tão horrível que decidi partir... O italiano quis dissuadir-me; consegui que me ajudasse.

Ontem à noite, pela centésima vez, adormeci nesta ilha vazia... Vendo os edifícios, pensei no que teria custado trazer essas pedras, o fácil que teria sido fazer uma olaria, fabricar tijolos. Adormeci tarde e a música e os gritos acordaram-me de madrugada. A vida de fugitivo tornou-me o sono leve: tenho certeza de que não chegou nenhum barco, nenhum avião, nenhum dirigível. E, contudo, de um momento para o outro, nesta pesada noite de verão, os capinzais da colina se cobriram de pessoas que dançam, passeiam e nadam na piscina como veranistas instalados, faz tempo, nos Teques ou em Marienbad.

Desde os pântanos de águas misturadas, vejo a parte alta do morro, os veranistas que habitam o museu. Pela sua aparição inexplicável, poderia supor que são efeitos do calor de ontem à noite sobre o meu cérebro; mas não se trata de alucinações nem de imagens: são pessoas verdadeiras, pelo menos tão verdadeiras quanto eu.

Estão vestidas com roupas iguais às que se usavam faz poucos anos: graça que revela (segundo me parece) uma consumada frivolidade; não obstante, devo reconhecer que agora é muito comum a gente se admirar com a magia do passado imediato.

Quem sabe por que destino de condenado à morte os observo, inevitavelmente, a todas as horas. Dançam entre os capinzais do morro, lugar cheio de víboras. São inimigos inconscientes que, para escutar Valência e Chá para Dois — uma vitrola muito potente abafou o ruído do vento e do mar —, me privam de tudo o que me custou tanto trabalho, que me é indispensável para não morrer, e me espremem contra o mar em pântanos infetos.

Neste intento de observá-los há perigo; como todo agrupamento de pessoas cultas, devem ter, em algum lugar, um meio de tirar impressões digitais e serviço de informações, e me remeterão, se me descobrem, por umas quantas cerimônias ou tramitações, ao calabouço.

Exagero: contemplo, com alguma fascinação — há tanto tempo que não via gente! — esses abomináveis intrusos; mas seria impossível estar sempre de olho neles. Primeiro, porque tenho muito trabalho — o lugar é capaz de matar o ilhéu mais hábil; acabo de chegar; estou sem ferramentas.

Segundo, pelo perigo de que me surpreendam olhando-os, ou na primeira visita que façam a esta zona; se quiser evitar isso, terei de construir guaritas ocultas nos matagais. Finalmente, porque há dificuldade material em vê-los. Estão no alto do morro e, para quem os espie daqui, são como gigantes fugazes; só posso vê-los quando se aproximam dos barrancos.

Minha situação é deplorável. Tenho de viver nestes baixios justamente num momento em que as marés sobem mais do que nunca. Há poucos dias, houve a mais alta que já presenciei desde que estou na ilha. Quando escurece, procuro galhos e cubro-os com folhas. Não estranho acordar dentro da água. A maré sobe por volta das sete da manhã; às vezes, vem adiantada. Mas, uma vez por semana, há subidas que podem ser definitivas. Uso cortes no tronco das árvores para meu controle; um erro poderia encher-me os pulmões de água.

Sinto, com desagrado, que este papel está se transformando em testamento. Se tenho de me resignar a isso, preciso fazer com que as minhas afirmações possam se comprovar, de modo que ninguém possa me julgar alguma vez suspeito de falsidade e pensar que minto ao dizer que fui condenado injustamente. Adotarei a divisa de Leonardo — Ostinato rigore — e procurarei segui-la.

Creio que esta ilha se chama Villings e que pertence ao arquipélago das Ellices. Do comerciante de tapetes Dalmacio Ombrellieri (Rua Hiderabad, 21, subúrbio de Ramkrishnapur, Calcutá), poderão os leitores obter mais dados. Esse italiano alimentou-me durante os vários dias que passei enrolado em tapetes persas; depois, me carregou para o porão de um navio. Não o comprometo, ao recordá-lo neste diário; não estou sendo ingrato para com ele... A Defesa Perante Sobreviventes não deixará dúvidas (...).


* Escritor argentino, um dos principais expoentes mundiais da literatura fantástica.

Nenhum comentário:

Postar um comentário