quarta-feira, 4 de maio de 2016

O mundo do celular como nosso mundo


* Por  Paulo Ghiraldelli


Um celular atualmente faz quase tudo. Para algumas pessoas, faz tudo mesmo. Quando ele chegou, pensou-se que seria um instrumento do tipo coleira eletrônica para esposas e maridos infiéis. Depois, acoplado à cultura da Internet hoje já disseminada até entre professores de filosofia brasileiros (uma espécie que rejeita “a máquina” e a novidade por idiotia), o celular mostrou-se não como um instrumento de trabalho 24 horas por dia ou uma coleira de adúlteros, mas um autêntico país portátil com sua ilha, cada vez maior, de entretenimento. Na verdade, um ampliador do tempo de casamento.

Todo o mundo atual nas sociedades de abundância, que são sociedades da leveza e do entretenimento (Sloterdijk), em que tudo ganha caráter lúdico, mesmo o trabalho, a regra é entreter-se a maior parte do tempo. O entretenimento é, no entanto, de baixa concentração, pois ele não é destinado para os que têm tempo livre de fato, mas para todos. Sendo para todos, é algo a ser usado no próprio trabalho, no metrô, ou nos intervalos de outros entretenimentos que podem ser mais sérios, talvez, como o sexo – onde em alguns casos pode haver comprometimento, ainda! O celular cumpre esse papel de elemento que está à mão, sempre, para o entretenimento: ele tira fotos, põe você no Facebook, lhe dá a chance de postar o que então você chama de realidade e, enfim, lhe fornece possibilidades de compartilhar notícias falsas em função da vingança como forma de entretenimento e da ideia de que você ainda vive, que é um ativista social etc. Fora isso, ele tem jogos! Permite que você, que nunca progride realmente no emprego, “passe de fase”, e ache então que fez algum progresso. Performances superadas, mesmo fantasiosas, nos dão essa chance de nos acharmos não medíocres com de fatos somos.

Mas, como isso prolonga casamentos?

Simples. Mais ou menos aos sete anos, vinha a crise inevitável dos casamentos, ao menos celular para uma boa parte que não era artista. Os artistas descasavam antes. Como era a fenomenologia da crise? Ia-se num restaurante ou festa e se era obrigado a ficar com o cônjuge chato, com filhos chatos e, depois, voltando para casa, fazer um sexo chato. Agora todo casal pode se aturar tendo cada um seu celular. Ficam mais tempos juntos sem ter de suportar um ao outro. Até o sexo fica melhor, pois podem mandar “nudes” para amigos ou filminhos de sexo deles mesmos, e imaginar algum amigo, ainda da velha guarda, se masturbando vendo-os gemer. A crise dos sete anos vai para mais adiante. Alguns casais chegam até a poder ver juntos os filhos entrarem para a universidade. Há algo de conservador nesse progressismo todo! Há uma proteção da família!

Isso não é bom nem ruim. Mas é um sintoma dos tempos em uma sociedade em que a regra é “corpos do mundo, uni-vos no entretenimento de hoje, ou dispersai-vos, tanto faz”. Esse lema é o do que seria aquele posto em um Manifesto Consumista, um livro necessário se quisermos cumprir o dever cívico de nossos tempos que é “consuma e se divirta antes que alguém pegue sua esposa (ou equivalente) para assim fazer”.  Um lema que vive junto deste, também um dever cívico: consuma pois sem consumo seu emprego não dura.

PS: não tente ler esse artigo e se desfazer de seu celular, o artigo não é sobre ética, é sobre ontologia.


* Filósofo.

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