Nem
tão sagrado assim
A religião, ou seja, a busca incessante
do homem por sua origem e finalidade, é um dos temas mais explorados por
romancistas de todas as partes e épocas. Em geral, porém, suas abordagens são
de aspectos nem tão sagrados assim. Ou seja, apresentam, em suas histórias,
comportamentos usualmente distorcidos e pecaminosos dos que se propõem a
“representar Deus na terra”: sacerdotes e outros líderes religiosos.
Eu poderia citar uma infinidade de
romances com essas características, tendo por foco as principais religiões
existentes, mas não o farei. O leitor, certamente, conhece, de sobejo, livros e
mais livros com essa temática. Mencionarei, apenas, e de passagem, alguns dos
romances mais famosos que têm religiosos como personagens.
Entre estes, pode ser citado, por
exemplo, “O crime do padre Amaro”, de Eça de Queiroz. Ou “Eurico, o presbítero”,
de Alexandre Herculano. Ou “O seminarista”, de Inglês de Souza. Outro romance
famoso, envolvendo sacerdote, é “La faute de l’abbé Mouret”, de Emile Zola.
Escrito em 1875, foi o quinto volume da série “Os Rougon-Marquart”. Nessa
primorosa obra, o autor (como fizeram os demais citados), trata da contradição
entre a vocação religiosa e o amor carnal.
O personagem central, padre Serge
Mouret, excede-se em mortificações, no intuito de aproximar-se da Virgem Maria,
por quem acha que tem profunda devoção. Adoece. Enviado ao campo para se
recuperar, conhece Albine, que o trata com o máximo desvelo. Não tarda, porém,
a apaixonar-se profundamente por essa bela mulher, pela qual é correspondido e
com a qual vive um amor sem reservas e nem restrições, como Adão e Eva no
Paraíso.
Há romances que, dadas algumas opiniões
desabonadoras contra determinada religião, posto que só embutidas no enredo e
apresentadas por um ou vários personagens, geram polêmica e chegam a ser
proibidos aos fiéis. Um desses casos é o ainda recente livro de Dan Brown, “O
Código da Vinci”, campeoníssimo de vendas mundo afora, que dispensa
comentários.
Mas nem todos os escritores que têm
alguma religião por tema as apresentam pelos seus aspectos mais negativos. O
australiano Morris West, por exemplo, escreveu dois primorosos livros, ambos
best-sellers, que nunca mereceram reparos do Vaticano ou dos fiéis. No
primeiro, “O advogado do diabo”, nos revela, através de uma história muito
bem-urdida, como é o processo de investigação da vida e das virtudes dos
candidatos à beatificação. No segundo, “As sandálias do pescador”, traz à baila
o comportamento pio e benévolo de um papa (que lembra muito João Paulo II,
embora o romance tenha sido escrito muito tempo antes de Carol Woijtyla assumir
seu pontificado). .
Há romances em que a religião não é,
propriamente, o tema do enredo, mas se faz presente nas entrelinhas. Um desses
casos é o do livro “Olhai os lírios do campo”, de Érico Veríssimo, no qual o
autor faz esta belíssima reflexão, no capítulo 13: “Deus é tão poderoso que
está presente até nos pensamentos dos que dizem não acreditar na sua
existência. Nunca encontrei um ateu sereno. Eles se preocupam tanto com Deus
como o melhor dos deístas”.
Ou esta, a propósito do Sermão da
Montanha: “Peço-te que pegues a minha Bíblia que está na estante de livros,
perto do rádio, e leias apenas o Sermão da Montanha. Não te será difícil achar,
pois a página está marcada com uma tira de papel. Os homens deviam ler e
meditar esse trecho, principalmente no ponto em que Jesus nos fala dos lírios
do campo que não trabalham nem fiam e no entanto nem Salomão em toda a sua
glória jamais se vestiu como um deles. Está claro que não devemos tomar as
parábolas de Cristo ao pé da letra e ficar de papo para o ar esperando que tudo
nos caia do céu. É indispensável trabalhar, pois um mundo de criaturas passivas
seria também triste e sem beleza. Mas precisamos dar um sentido humano às
nossas construções. E quando o amor ao dinheiro, ao sucesso nos estiver
deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios do campo e as aves
do céu”.
Eça de Queiroz, por seu turno, no
romance “A cidade e as serras”, escreveu o seguinte, a respeito da presença
divina em nosso dia a dia: “Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da
flor do trevo ao mar sonoro – tudo é o mesmo corpo, onde circula, como um
sangue, o mesmo Deus. E nenhum frêmito de vida, por menor, passa numa fibra
desse sublime corpo, que se não repercuta em todas, até as mais humildes, até
as que parecem inertes e invitais”. E complementou, em outro trecho: “Ele (o
castanheiro sobre o qual se referia) me fez sentir como toda a sua vida de
vegetal é isenta de trabalho, da ansiedade, do esforço que a vida humana impõe;
não tem de se preocupar com o sustento, nem com o vestido, nem com o abrigo,
filho querido de Deus, Deus o nutre, sem que ele se mova ou se inquiete. E é
esta segurança que lhe dá tanta graça e tanta majestade”.
E por que os romancistas atentam, com
maior assiduidade, para as contradições e comportamentos corrompidos dos que se
propõem a ser os guardiões e propagadores de determinadas religiões? Talvez a
resposta esteja na constatação feita pelo escritor Julien Green, no livro
“Diário”, ao observar: “Em cada um de nós há um pecador e um santo. Tanto um
quanto o outro se desenvolvem, cada qual em seu próprio plano. Tanto um quanto
o outro, e não um ou o outro. Ambos ao mesmo tempo. Enquanto o santo se
desenvolve – se o homem é um santo – o pecador dentro dele se desenvolve apenas
no plano imaginativo... Se o homem é um pecador – isto é, se o pecador leva
mais vantagem que o santo –, o santo se desenvolve o melhor que pode no plano
imaginativo (um desejo de santidade). É por isso que um pecador convertido
nunca começa do nada. Fez algum progresso durante sua vida de pecado”.
Boa leitura.
O Editor.
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Penso que os severamente maus se julgam bons.
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