Beleza inesquecível e irresistível
O escritor francês Victor Hugo, um dos grandes clássicos da
literatura mundial, é desses homens de letras que dispensam apresentações. Portanto,
não as farei, até para não ser repetitivo ou redundante. Por que? Porque
escrevi, há não muito, longo ensaio, dividido em vários textos isolados – mas
com continuidade, ou seja, com começo, meio e fim – que partilhei, por vários
dias (se não me falha a memória, por semanas) com vocês, com comentários tanto
sobre a sua vida quanto, e principalmente, sobre sua obra.
Destaco, todavia, que ele foi exímio criador de personagens,
e de ambos os sexos. Celebrizou-se por emprestar-lhes verossimilhança, por
retratar figuras marcantes dessas que os leitores não ousam, ou não conseguem
esquecer. São inúmeras. Constituem imensa legião de tipos, com vários perfis
sociais e psicológicos: clérigos, soldados, nobres, damas de alta sociedade,
mendigos, costureirinhas, prostitutas etc.etc.etc., abrangendo, se não todas (o
que é impossível para qualquer escritor) boa parte das pessoas que conheceu e
com as quais conviveu no seu tempo, o século XIX, com os respectivos
comportamentos.
Definir uma única personagem feminina inesquecível das
tantas criadas por Victor Hugo, em torno da qual haja consenso, portanto, é
tarefa que considero (e que é) impossível. Não que ele tenha dado poucas opções
a quem se proponha a eleger uma, apenas uma, que não seja contestada por ninguém.
Justamente, pelo contrário! Há tanta variedade de tipos, e todos com
características tão marcantes, que a escolha tem que ser aleatória. Será
facílimo justificar a razão de se optar por fulana, em detrimento de beltrana,
e vice-versa. Todas se justificam. Como todo leitor de Hugo, tenho a minha
preferência. E esta recai sobre a cigana Esmeralda, do romance “O corcunda de
Notre Dame” (que no original francês tem o título de “Notre Dame de Paris”).
O escritor, ao receber de seus editores a incumbência, em
1829, de escrever um livro, para ser entregue em prazo extremamente exíguo, de
um ano ou até menos, sequer cogitava, a princípio, em produzir uma obra de
ficção. Pensava escrever História. Todavia, ao fim e ao cabo, o que acabou
saindo foi um dos mais memoráveis romances de todos os tempos, inquestionável
obra-prima ficcional, publicada em 1831. O jornalista Jonatan Silva observou
(em magnífica análise crítica, sobretudo enxuta e objetiva, publicada no site “Paraná
Online”, em 5 de março de 2015) o seguinte: “O amor de Quasímodo, o corcunda
que trabalha como sineiro da catedral de Paris, pela cigana Esmeralda, uma
dançarina de rua que se apresentava em frente à igreja, é o pano de fundo para
que Hugo transformasse em literatura a sua obsessão pela era medieval. A
história, que se passa em 1482, é, na verdade, uma ode à arquitetura gótica da
cidade. Tanto que, em uma nota do livro, o autor explica que o termo gótico em
seu significado consagrado é ‘perfeitamente impróprio’”.
O escritor estava preocupado com a crescente deterioração da
catedral dedicada à mãe de Jesus (“Notre Dame” quer dizer “Nossa Senhora” em
francês), construída em 1330 na Ile de La Cité, no meio do Rio Sena. Na época
em que Hugo situou sua história, em 1482, ali estavam localizados os dois
grandes monumentos da capital francesa: a igreja, a mais importante de Paris, e
o Palácio da Justiça, o que centralizava, na ilha, religião e governo. Ao fim e
ao cabo, todavia, acabou produzindo, reitero, um dos clássicos da literatura
mundial, sobretudo de ficção. Tratando, especificamente, da nossa personagem
feminina inesquecível, é forçoso reconhecer que Esmeralda (nascida Agnes) é uma
mulher que representa uma espécie de beleza inquestionável, absoluta, beirando
à perfeição, dessas que é impossível de não se apaixonar tão logo se a conheça.
Dois homens (entre tantos outros), de perfis diametralmente
opostos, ou seja, Quasimodo – que aos quatro anos de idade foi abandonado pelos
pais à porta da Catedral por causa da sua deformidade física, protótipo da feiúra,
fisicamente repulsivo – e Dom Claudio Frollo (que criou o corcunda) se apaixonaram
por ela. Não a amavam, todavia, da mesma maneira. O homem deformado, sem
esperança alguma de ser correspondido, amava-a de forma desinteressada, altruísta,
sem nada a esperar dela e com tudo a lhe dar, até a própria vida se fosse
preciso. Já o clérigo sentia pela cigana
enorme paixão, mas, sobretudo, carnal, repleta de desejo sexual reprimido,
embora muitas vezes se notasse uma grande ternura e carinho por ela. A
belíssima mulher, todavia, não corresponde á paixão de nenhum dos dois. Faz,
porém, opção equivocada. Elege para amar a Phoebus, oficial da guarda real, que
apesar de lhe fazer mil juras de amor, tem uma noiva, Fleur-de-Lys, também
belíssima, mas com ciúme incontrolável pela rival, o que a leva a praticar toda
sorte de maldades. O tal soldado não nutre nenhum tipo de sentimento por
Esmeralda, a não ser, exclusivamente, desejo sexual.
Interessante, e acima de tudo pertinente, é esta outra observação
do jornalista Jonatan Silva, na fonte que citei: “Hugo usa sua obra para
criticar a postura conservadora da Igreja Católica, naquela época uma
instituição tão poderosa quanto o Estado. Ainda que tivesse sido um cristão
fervoroso, cria em Claude Frollo, paí adotivo de Quasímodo e arquidiácono de
Notre Dame, um personagem que precisa se
dividir entre a devoção a Deus e a adoração por Esmeralda. Sem mencionar a
palavra pecado, Victor Hugo cria um personagem atormentado pelo desejo carnal
que, consciente de sua condição, se esconde atrás da figura religiosa”.
E Jonatan acrescenta, mais adiante: “A única tentativa de
conquistar a cigana, que também desperta o desejo de homens poderosos da
cidade, é sequestrá-la. E encarrega Quasímodo de dar cabo da ação. Como era de
se esperar, o corcunda é apanhado e levado à puníção física e é exposto em
praça pública como troféu. Morto de sede, literalmente, o pobre-diabo ouvia à
sua volta as pessoas afirmando que era ‘tão feio quanto a maldade’. E a única
pessoa a lhe oferecer um pouco de água é Esmeralda”.
Minha proposta não é a de resenhar o romance, mas de
justificar minha escolha da cigana como personagem feminina inesquecível, das
tantas que Hugo criou. Mas para não deixar o leitor, que eventualmente não
tenha lido o livro (deveria lê-lo) na mão, adianto o desfecho da história, cujo
conteúdo colhi na enciclopédia eletrônica Wikipédia, dada sua objetividade: “Do alto da Igreja de Nossa Senhora, Quasímodo
e Frollo (que assassinou Phoebus, mas que tramou para que a cigana levasse a
culpa pelo que não fez) assistem à execução de Esmeralda. O corcunda, louco de
desespero, atira o padre do alto da torre e desaparece para sempre. Muito tempo
depois, ao ser aberto o ossário de Montfaucon, local onde a bela cigana havia
sido sepultada, são encontrados dois esqueletos abraçados; um deles, com
visível deformação da espinha”. Esmeralda é ou não é personagem feminina para
não se esquecer jamais depois de conhecê-la? Eu nunca a esqueci!
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Nenhum comentário:
Postar um comentário