Vida paralela
* Por Cecília França
Clarice sabia bem o tormento que
a amiga vivia por estar apaixonada pelo chefe. Também ela já passara por isso,
e não apenas uma vez. A primeira culminara com um feliz casamento; a segunda,
com apenas uma noite de amor seguida de abandono de emprego. Aliás, colecionava
histórias amorosas de darem inveja em "Júlias" e "Sabrinas"
extasiadas de paixão nas páginas dos livros.
E suas reviravoltas profissionais
não deixavam a desejar, uma vez que o brilhantismo de seu trabalho sempre
vencia os obstáculos, por mais que parecessem intransponíveis. Às vezes,
obtinha ajuda de algum inusitado conhecido influente. Os papéis de destaque na
empresa eram-lhe reservados sem a menor cerimônia, como que por desejo do
destino, fazendo com que se sobressaísse sobre os demais colegas logo nos
primeiros dias de trabalho. Realizara seu sonho de escrever e colecionava
prêmios e homenagens por seus romances construídos durante as madrugadas.
Enfim, Clarice vivia uma história
de sucessos cumulativos. Isso tudo com apenas vinte e cinco anos e relegada ao
cotidiano de repórter do interior. Já tivera 50 anos, voltara aos cinco,
namorara e se casara com astros, vizinhos e colegas de trabalho. Tivera lindos
filhos. Também vivera na Idade Média (coisa que, aliás, acreditava piamente ter
sido verídica, espírita que era). Vivia no que outros costumavam classificar
como "mundo paralelo".
Por vezes, sua intensa imaginação
a preocupava, quando chegava ao cúmulo de confundir realidade com ficção e preferir
esta última. No entanto, a apreensão diante do virtualismo de seu mundo não foi
bastante para frear suas divagações sem limites que lhe renderam o apelido
de "imaginária" e a impediram de construir uma vida real. Era
demasiado idealista para concordar que o amor fosse suplantado por outras
necessidades humanas.
Clarice viveria seus longos anos
pisando em nuvens e sonhando em tempo integral, dedicando, assim, pouca atenção
a temas e pessoas realmente determinantes. Quando de sua última morte – da qual
não poderia voltar – escreveriam em sua lápide: "Viveu e sonhou
muito", a que acrescentaria, em tom solene, um espectador: "mas
realizou pouco".
* Jornalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário