sexta-feira, 21 de março de 2014

Vingança do Estado

  
A pena de morte é um dos temas mais polêmicos, e que despertam mais paixões, em todo o mundo. E não apenas entre juristas, sociólogos e outros intelectuais, mas, sobretudo, entre as pessoas do povo. Vários escritores recorreram a essa temática, sem opinarem diretamente, deixando suas opiniões sutilmente implícitas nas entrelinhas ou nos diálogos dos personagens. Também já recorri ao tema, em um dos meus tantos contos, enfatizando o terror e a angústia de um sentenciado aguardando a execução por crime que não cometeu. Alguns, não importa a profissão que exerçam, defendem com paixão esse tipo de punição, argumentando que determinados delinqüentes são irrecuperáveis e nada têm a oferecer à sociedade. Convenhamos, há uma infinidade desses tipos que devem, no mínimo, ser segregados “ad aeternum” da sociedade. Outros, todavia, opõem-se, tenazmente, à medida, classificando-a de “vingança oficializada”.

Sempre que ocorre algum crime, com requintes de crueldade, como o cometido no início de 1985 (prefiro sempre citar casos antigos e já esquecidos por todos), por um jovem, na cidade de São Paulo, no qual pai, mãe e irmãos foram trucidados, sem que tivessem qualquer chance de defesa, apenas porque momentos antes o rapaz havia sido advertido pelos pais, o assunto sobre a pena de morte vem à baila. Pronunciamentos passionais, então, são feitos em profusão, defendendo a medida, mesmo por pessoas esclarecidas e ponderadas.

Confesso não ter opinião formada (não, pelo menos consolidada e imutável) a propósito. Já mudei de postura várias vezes e não se trata de falta de personalidade como pode parecer. Quando dou voz, apenas, à emoção, face crimes hediondos, sou totalmente a favor da pena de morte. Mas, quando priorizo, exclusivamente, a lógica e a razão e penso, sobretudo, na possibilidade de erros judiciais – aliás bastante  comuns e recorrentes –, sou visceralmente contrário. Creio que a maioria das pessoas age também assim, embora possa negar enfaticamente. Vá se acreditar na sinceridade alheia!

Desde tempos imemoriais, essa prática vem sendo adotada para punir os que suprimem vidas. E as execuções são feitas das mais variadas maneiras, indo do apedrejamento, do linchamento e da forca – as formas mais comuns adotadas em passado ainda recente – aos pelotões de fuzilamento, câmaras de gás, cadeiras elétricas e injeções letais, nos últimos tempos. Houve época em que execuções se constituíam em acontecimentos sociais, em uma espécie de mórbida diversão. Reuniam milhares de pessoas em praças públicas, famílias inteiras (inclusive crianças) e a maioria aceitava, como a coisa mais natural do mundo, a supressão de vidas.

Num determinado estágio da civilização, cabia aos parentes das vítimas de assassinato punir os criminosos. Eram as propaladas “dívidas de sangue”, que tinham, necessariamente, que ser resgatadas. Coitado, por exemplo, do primogênito que deixasse de vingar a morte do pai! Ou do irmão que não vingasse a morte de irmão! Quem se negasse a pagar esse cruel débito macabro, ou por ser avesso à violência, ou por reconhecer justiça na execução do parente (quando este a merecia), era segregado do convívio social. Passava por humilhações inomináveis e era rotulado de covarde, pecha que carregava pelo resto da vida. E tal designação era considerada a maior das ofensas que se poderia fazer a alguém.

Essas dívidas de sangue deram causa a históricas guerras entre famílias, intermináveis, algumas com até mais de um século de duração. Uma das mais célebres, nos Estados Unidos, por exemplo, foi a que opôs os Martins e os McCoys. E, na cidade pernambucana de Exu, até recentemente, coisa de décadas, duas famílias ainda mantinham disputa desse tipo, sustentando longa e inconciliável inimizade, que fez dezenas de vítimas, dos dois lados, por anos e mais anos.

A pena de morte nada mais é do que o Estado assumindo a dívida de sangue. Não passa, portanto, de vingança da sociedade contra infratores. Ou seja, aquele que condena o homicídio (no caso o Estado, na figura de um preposto, o juiz), comete o mesmo delito que proíbe aos outros. Isso, no mínimo, é uma aberrante contradição! Um erro jamais justifica outro, seja quem for que o cometa ou qual seja a razão.

Morte é morte, tanto faz se praticada mediante tocaia por algum malfeitor, com o objetivo de roubar ou estuprar a vítima, ou se causada por gás cianureto, por injeção de produto químico letal ou por tiro de fuzil de algum carrasco a serviço do Estado. Aliás, o extermínio autorizado e patrocinado pela sociedade, do ponto de vista moral, é pior do que o dos homicidas tradicionais que, certos ou errados, têm lá (ou pelo menos acreditam ter) seus motivos. Já o executor de uma sentença de morte não tem o mínimo interesse pessoal no condenado, ao qual sequer conhece. Mata fria, impiedosa e mecanicamente um ser humano, como se estivesse matando um animal qualquer, um frango, um porco ou um carneiro.

Ademais, não foi um e nem foram apenas dois os erros judiciais cometidos por tribunais, atribuindo culpas a pessoas absolutamente inocentes, em todos os tempos e lugares. Essas aberrações jurídicas somam-se aos milhares, quiçá aos milhões e penalizam, quase que somente os pobres, os humildes, os iletrados que não têm como pagar bons advogados. Muitos desses erros – embora não tantos como gostaríamos – são reparados a tempo, mas somente quando a pena imposta ao injustiçado é a da privação da liberdade. Em raros casos, os condenados à morte livram-se da execução, pela descoberta, localização e captura dos verdadeiros culpados. Mas esta não é, e nunca foi, a regra, senão uma exceção.

Mesmo no caso de prisões indevidas, a reparação nunca é completa. Que dinheiro paga uma reputação manchada, as humilhações e os sofrimentos de quem é encarcerado sem dever? E quando o réu é condenado à morte, executado e depois se descobre que era inocente? Como reparar essa monstruosidade? Como devolver a vida ao executado indevidamente? Quem deve ser responsabilizado por tamanho erro judiciário? O juiz? O promotor? As testemunhas? O advogado? O júri? A polícia? O Estado?

Se for este último, a quem cabe a responsabilidade? Ao presidente da República? Ao governador? Ao Supremo? Todos, certamente, vão saber encontrar subterfúgios e o erro vai passar batido. Quantos, por exemplo, dos 1.500 executados em 1985 (olha eu citando, de novo, dados antigos), em 40 países onde vigorava a pena de morte, não eram inocentes? Ninguém sabe! E quais são os responsáveis por esses erros? Quem os punirá? Como? Ficam as incômodas perguntas no ar...E fica o básico preceito bíblico, um dos Dez Mandamentos: não matarás! E em hipótese alguma, acrescente-se!

Boa leitura.


O Editor

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Um comentário:

  1. Como você mesmo citou, nos momentos de paixão, dane-se o racional, e a população só pensa em vingança, o que já vem acontecendo por conta própria com relativa frequência e de forma crescente.

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