sábado, 29 de março de 2014

Desejo contido


* Por Cecília França

Nós a olhávamos de longe, do outro lado do escritório, enquanto ela conversava e gargalhava com o colega de setor. Quanto mais enfático era meu amigo em notar sua graciosidade, mais eu insistia em minimizar sua beleza e refutava minha atração com frases como: "Por que eu me sentiria atraído justamente por ela, que não tem nada de especial. Aliás, é muita magra". Mas seu sorriso paga tudo, pensava, enquanto meu amigo lançava-me um olhar zombeteiro.

Vínhamos para o trabalho no mesmo ônibus. Sentávamos, não raramente, um ao lado do outro. Não por amizade, mas por pura coincidência. Pegava o ônibus um ponto antes do dela, ocorrendo, com freqüência, de estar ainda vazia a poltrona ao meu lado quando ela entrava. Diariamente dizia-me um "oi" acompanhado de um sorriso de lábios abertos que me desarmava.

Não possuía beleza superior à da maioria das mulheres, porém, seu corpo esguio vestia bem todas as roupas, especialmente um vestidinho estampado que me deixava angustiado para enxergar por debaixo dele. Não tinha seios fartos, seus quadris eram assentados, cintura bem-talhada, colo bonito... Olhava-a com mais freqüência do que deveria, por isso, meu amigo insistia em ressaltar minha suposta atração.

Eu mentia descaradamente, destacava seus defeitos – como as orelhas ligeiramente abertas e as olheiras constantes –, ria de alguns de seus trejeitos e minimizava seu talento. Seria demasiadamente troçado caso comprovassem meu desejo por aquela impopular mulher.

Numa manhã chuvosa de janeiro ela faltou ao trabalho sem aviso-prévio (a mim, pelo menos). Isso nunca ocorrera durante o pouco mais de um ano em que trabalhávamos na mesma empresa e foi o que eu precisava para notar o tamanho de sua importância.

Senti-me nu com a sua ausência, sobre a qual não perguntei a ninguém. No entanto, constatei que necessitava daquele perfume de amêndoas que impregnava em minha camisa pelo simples roçar eventual de sua pele em meu braço, dentro do ônibus. Sentia-o pelo resto do dia, fazia parte de meu cotidiano. Mas, naquela hora, minha camisa exalava puro amaciante e não me agradava nem um pouco. De repente, não havia mais motivo para olhar para o lado oposto do escritório, que estava escuro, vazio.

Trabalhei cabisbaixo durante o período da manhã enquanto ninguém parecia se alarmar com a falta dela. Por volta das treze horas, um turbilhão rodopiou dentro de mim na sensação mais forte que jamais sentira. Nos primeiros segundos, nem ao menos sabia com certeza se era ela, tamanho o fascínio generalizado que provocara com sua entrada. O cabelo vermelho ganhara um brilho ofuscante, as roupas pareciam vindas de um guarda-roupa de socialite. Nunca a vira de salto alto e adorei perceber que realçavam a beleza de suas curvas. Senti um misto de desejo e alívio, pois, enfim, poderia chamá-la para sair sem que fosse motivo de chacota. E faria isso no final daquela tarde.

Quinze minutos haviam se passado das seis quando consegui concluir meus relatórios. Arrumei a papelada na pasta numa correria sem igual para tentar alcançá-la, pois sabia que ela não costumava trabalhar um só minuto após o horário. Olhei à frente sua mesa vazia e concluí que ela já esperava o ônibus. Despedi com pressa de meus colegas, mas, estanquei diante da sala da chefia.

Na cadeira em que habitualmente sentavam aqueles que receberiam uma carga violenta de insultos, estava ela. As pernas cruzadas, o sorriso inabalável, as mãos percorrendo o cabelo sedoso. Notei então que aquele homem que eu menosprezava houvera despertado há tempos para aquilo que eu era cego e – pior – ganhara o que, erroneamente, eu julgara estar reservado para mim.

*Jornalista


Nenhum comentário:

Postar um comentário