quarta-feira, 26 de março de 2014

Sobre o filme de Lars Von Trier

* Por Marco Albertim

Ninfomaníaca é um drama épico; não é o que pode ser chamado de um filme belo, com narrativa linear. O recurso a recuos no tempo enriquece as sequências, confere densidade a um discurso que se dá sem a ajuda de uma trilha sonora também com notas musicais severas.

É uma realização polêmica porque é explícita. A abordagem da vida pregressa de Joe – Charlotte Gainsbourg –, de sua conturbada sexualidade, não é chula nem vulgar; é invasiva na medida em que a personagem se expõe a seu derradeiro e definitivo terapeuta – Seligman – Stellan Skarsgärd. Por ser longo, divide-se em dois volumes, como num extenso romance; cada volume divide-se em capítulos. A unicidade entre um e outro dá-se no cômodo onde Seligman ouve o relato de Joe, depois de encontrá-la deitada num labirinto de ruelas desertas entre prédios de paredes sombrias; com hematomas e equimoses no corpo. E consolida-se ao longo da narrativa, com recuos a sequências já conhecidas da infância e da adolescência de Joe. A unicidade entre os dois volumes tem seu ápice no desfecho. Joe, que contara sua vida a outros, não evitara a excitação em cada um dos interlocutores. Em Seligman, entrevê a paciência de ser ouvida, seguida de explicações do intelectual solitário; explicações para todos os enigmas, inclusive os do sexo. Seligman confessa-se inapto para o sexo já na altura dos mais de cinquenta anos de vida; não hesita em se chamar de assexual. Ao final de um boa-noite prosaico, retorna ao quarto onde repousa a inusitada hóspede; volta crendo se redimir da apatia da rotina sem o uso do sexo com a parceria de alguém; bolina-se antes de tocar em Joe. Não... – ela defende-se. Dá o único testemunho de recusa ao sexo. Com a mesma Beretta que tomara de P – Mia Goth –, criatura sua que se volta contra, atira em Seligman. Em nenhum momento o roteiro e a direção do dinamarquês Lars Von Trier, deixa entrever a tragicidade que envolve a morte de Seligman. Joe já se deixara violentar, mesmo com as nádegas chicoteadas por um assustador profissional – K – Jamie Bell. Sua recusa é um indício robusto de que, dali em diante, tem começo a recuperação do vício sexual.

Seligman não é terapeuta, inda que se mostre com mais habilidade para o ofício; bem mais que a outra terapia a que Joe se submetera, integrando um círculo de fêmeas com a mesma mania. Com ele, não ouve censuras, a não ser quando conta que estimulara a difícil ereção de um pedófilo, com referências a um episódio fictício de pedofilia. Ela, então, socorre-o com o coito bucal. Com as outras, que não se dizem ninfomaníacas e sim viciadas em sexo, rebela-se contra a ideologia que anima o círculo, descobrindo que estão ali para se livrar da prática tão somente "para não enojar a burguesia". E confessa-se orgulhosa de sua sexualidade corrosiva.

Joe não é perversa, é autodestrutiva. Alicia P para trabalhar numa casa cujos profissionais não poupam requintes para reavivar taras ou descobri-las em perfis ainda não definidos. P, sua criatura, supera-a com outros dotes, mostra-se cruel e assassina em potencial. É dela a Beretta cujo uso torna-se letal em Joe. Jerome – Shia Labeoufe – fora casado com Joe. Frequentando a casa dos requintes, junta-se a P na frieza do trato e na corrosão do sexo. Na ruela deserta, Joe saca a Beretta, a arma falha seguidas vezes depois de mirar para a cabeça do ex-marido e pai de seu único filho. Jerome espanca-a sem dó e com o silêncio cúmplice de P. Em seguida, com lascívia sádica, faz uso de P de um lado e de outro. O roteiro deixa implícito que o código sem código no corpo da então adolescente Joe – Preencha-me em todos os buracos –, cospe em seu rosto ao explicitar a condenação de nunca mais fazer uso dele. A perversão de P mostra-se sem rebuços, quando ela urina no rosto de sua criadora; o ato é mostrado em plano detalhe, para conferir a frieza sádica de P. E P, diga-se, no viço dos dezoito anos de vida, obtivera de Joe não só o maneirismo do ofício, mas a graça do corpo.

A fotografia de Ninfomaníaca não tem seus pontos altos nas performances do sexo. Quando Joe descobre que Jerome é mais que um cliente de P, foge para as montanhas. O perfil de seu corpo esguio se confunde com galhos secos de árvores morrendo. Joe é parte da paisagem morta. O drama no juízo de Joe é o mesmo das moléculas em atrito surdo nos galhos mortos.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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