domingo, 30 de março de 2014

Os pomares da minha infância


* Por Marcos Alves


Desde garoto gostava de ficar imaginando histórias, envolto em pensamentos. O momento ideal era quando estava no ônibus, indo de uma cidade para outra. Havia algo de especial nisso. Era um descanso e um momento exclusivo. Mais parecia a caminho da lua em vez da ‘viagem” de pouco mais de 30 quilômetros entre a partida e a chegada.

Era bambuzal em torno do rio, casinhas nos morros, bois e cavalos pelo pasto. Gente humilde a olhar o ônibus com as mãos na testa para proteger do sol. A pele marcada pelo trabalho duro. Rostos de onde brotava uma força notada a cada aperto de mão. Os calos não tiram a doçura do coração dessa gente boa.

O tempo passava devagar e a vida tinha sabor de mexerica, jabuticaba, sopa quente no jantar e um suor teimoso na testa. Costumava ficar cansado ao fim do dia, depois de muita bola no campinho de terra, pique bandeirinha, idas e vindas atrás de açudes e rios no verão. Fogão à lenha no inverno. Foi assim entre a infância e o começo da adolescência, em uma cidade pequena do interior de Minas.

Andávamos sempre em grupo, alguns amigos iam embora para sempre, outros chegavam para ficar. No carnaval, improvisávamos uma batucada. Um belo dia um sujeito encasquetou de organizar o barulho da molecada. Com muita boa vontade e poucos recursos, saiu todo mundo em busca de latas de todos os tamanhos, caixas de madeira e outros objetos que junto com tamborins, agogôs e outros instrumentos de percussão davam um som da melhor qualidade.

Os ensaios eram noturnos, na porta de casa. O apito marcava os breques, paradinhas e “deixas” para os solos. Era a hora de mostrar habilidade com as baquetas e suingue, tarefa geralmente entregue aos melhores. Eu ficava de canto, tocando meu tamborim. Queríamos ser a escola de samba do bairro, já que não havíamos sido convidados por nenhuma das duas que existiam na pequena Paraguaçu dessa época. À medida que o carnaval se aproximava ensaiávamos com mais gana, e o som ficava redondinho.

Pena não haver imagens, fotos e as poucas gravações foram perdidas. Os ensaios geralmente terminavam com uma triunfal volta no quarteirão. As pessoas dançavam nas sacadas, saudavam-nos da janela. Poucos torciam o nariz, geralmente os mesmos que costumavam furar a bola da pelada ou chamar os fiscais do Juizado de Menores.

O maluco que inventou a escolinha de samba também incentivou-nos a montar um time de futebol. E não é que vingou? Em poucas semanas tínhamos um cronograma de treinos e amistosos marcados em várias cidades da redondeza. Íamos de Kombi, quase vinte garotos de chuteira na mão e sonhos de ser jogador profissional. Nenhum de nós chegou lá, mas isso não importa. Depois do jogo, a Kombi parava numa padaria ou lanchonete e era uma festa de salgados, refrigerantes e alguns cigarros.

Não tinha necessidade de sair dali. Não que me negasse a crescer, envelhecer. Não. Mas era feliz ali, daquele jeito. Meninos de bermuda e camiseta, meninos do interior. Moleques de rua sem fome – mesmo os menos favorecidos jamais vi pedirem dinheiro ou comida. Comiam na casa da gente, às vezes. Ou íamos todos buscar, para não dizer roubar, dos pomares fartos espalhados pela cidade. Os pomares da minha infância já não existem, mas o sabor e o cheiro permanecem em algum canto da minha alma.

* Marcos Alves é jornalista.
  

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