segunda-feira, 17 de março de 2014

Entre o Dunquerque e a cristaleira

* Por Daniel Santos


Sim, sim, havia uma velha na casa. Uma velha muito mais velha que as outras, tias e avós. Quando forçam a memória, os descendentes lembram dela errando pelos aposentos, atrapalhando a velocidade de todos.

Primeiro, esgueirava-se por entre a mobília, mas a mobília foi acabando e a tal passou a andar ressabiada, rente às paredes. E, assim, foi sendo escorraçada para os fundos, onde, não se sabe quando, desapareceu.

Ali, depois da cozinha e da copa, havia apenas o banheiro dos empregados com infiltrações nas paredes, o limo tingindo a cal em torno da pia, e o quarto onde atulhavam-se peças de mobília sem mais serventia.

Será que... Os descendentes foram ao quarto em busca de indícios. Por minutos, forçaram a vista e desconfiaram de algo entre o dunquerque e a cristaleira, algo miúdo e ressequido que talvez fosse um corpo humano.

Aproximaram-se mais e deram com olhinhos duros de mágoa!  Não gemeu nem nada, mas sua imobilidade assustava. Ao reconhecerem nela traços que eles herdaram, houve um berro – assombroso berro do remorso.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.



Um comentário:

  1. Mumificou-se, feito lagartixa ressequida, que mal emana odor. Assombroso, mas ainda assim possível. Velhos são menos do que objetos, pois estes pelo menos têm serventia.

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