sábado, 22 de março de 2014

Bingo!


* Por Laís de Castro

Aconteceu no banheiro de um bingo, onde pisa menos gente do que em capela de fazenda na segunda-feira. Não vou dizer onde e nem vou dizer quando. Porque tenho medo. Aquele mesmo medo que a gente sente de andar de carro depois de um desastre em que vê tudo rodar e quebra um braço e uma perna.

Só vou contar a que horas aconteceu, foi num fim de tarde lindo, de começo de primavera, uma primavera metida a verão, aquele vento morno, as crianças brincando na praça, lugar para estacionar a vontade, bairro simples e calmo. Se alguém quisesse um retrato para mostrar a paz e a felicidade no mundo dos vivos, poderia tirar ali, naquela hora. O mesmo rapaz baixinho tomando uma inútil conta do carro, os mesmos velhos jogando dominó no coreto do jardim, o sol se pondo e tingindo de um tom avermelhado as paredes caiadas das casas. Estou inventando? Que nada! Essa praça existe e, antigamente, havia ali até um cinema chamado Universo, uma espécie de Cinema Paradiso, onde todos iam ver os filmes da Atlântida, da falecida Atlântida que um dia quis ser a Hollywood dos Trópicos e deu no que deu.

O velho cinema transformado em bingo, no Brasil todos os cinemas antigos viraram igreja universal ou bingo, em vez de dar diversão e cultura, tiram dinheiro do povo. E o meu também, que adoro bingo, não sou de ferro e daí? Alguém tem algo a dizer contra isso, diga agora ou cale-se para sempre. Tem gente de um falso moralismo irritante, vive cometendo pequenos crimes e falando dos outros – aquela lá, é só procurar no bingo, que encontra, aquela outra passa o dia todo no biriba no clube e a outra vive em cassino clandestino e ainda bebe um tanto de uísque. Faladeira, fofoqueira, besta é a mãe de quem falou. É, eu estou meio revoltada mesmo, mas quem passasse pelo que passei também estaria, olha aqui o rasgão de canivete que eu tenho nas costas. Precisei dar dez pontos na farmácia e ainda dizer que escorreguei e cai em cima de uma garrafa que o meu filho tinha quebrado no chão da cozinha eu, que naquela cidade nunca tive uma garrafa, nem uma cozinha e muito menos um filho. Tá bom, tá bom, vamos aos fatos.

Nesse bingo, como em todo bingo, enquanto tem lugar, cada um vai sentando numa mesa, é o bloco do eu sozinho, pouca gente vai acompanhada ao bingo, tem uma multidão de solitários. Engraçado que tem meninas de 18 anos, rapazes de 20 e uma resma de velhinhos tentando a sorte. A turma da meia idade anda sumida, trabalhando, imagino, que o trabalho enobrece e dignifica o homem. Coisa nenhuma, só o ócio liberta.

Eu não faço parte dos solitários ponto com ponto br, mas tenho um tempo livre e vou queimar ali, para preservar os neurônios, que marcando 74, número 1, 12, 53, 66, seis, seis, e 40, repousam em berço esplêndido, esfriam. Nesse bingo tem um café doce, horrível, fraco, mas a gente, entre um número e outro, primeiro número, 23, 76, sete seis, 84, 22, número 8, vai tomando um gole aqui, outro ali, daí fica com sede, daí pede uma água com um pão de queijo imenso que custa exatos oitenta centavos, é pão de queijo mais barato do país, daí dá vontade de ir ao banheiro.

Fui.

Tem que descer três degraus para entrar e, quando pisei no terceiro senti estourar um flash em cima de mim, eu tinha sido fotografada por uma Polaroid que estava na mão de uma mulher com aquelas meias de filme de terror na cabeça. Gritei imediatamente porque não tenho nenhum controle nestes momentos e grito alto, mas não ouço a minha voz, parece que eu não estou gritando e por isso não entendi porque tanta violência para me calar. Olha, quando eu lembro me arrepio inteira e acontece até hoje comigo aquela coisa de desenho animado em que o Cebolinha bate os joelhos um no outro quando tem medo. Aquilo é de verdade, uma vez um amigo me falou é uma reação muscular involuntária a gente bate os joelhos sem querer bater, naquela época eu não acreditei, mas agora acredito.

Daí eu fui sendo empurrada até o terceiro e último banheiro e lá me tiraram todo o dinheiro da carteira e exigiram o cartão do banco e a senha, dá logo e diz a senha logo senão eu vou te moer de porrada, me sussurravam entre um sopapo e outro no rosto e eu pensando no tratamento de dentes que estava custando tão caro. Claro que eu dei, além do mais porque as duas mulheres me diziam o tempo todo que tinham a minha fotografia e sabiam onde eu morava com meus filhos e minha mãe e tudo o mais. Só que o maldito cartão só deixava sacar 600 reais por dia e elas queriam mais do que isso além dos 200 que eu levava na carteira.

Foram ficando nervosas e eu tentei acalmar aquela situação dando o relógio, a chave do carro, os dois pequenos anéis de ouro que estavam nos dedos. Parecia que eram craques naquilo, com aquelas meias de nylon na cabeça, o nariz amassado como pão velho, a voz metálica, o cabelo grudado na testa como em defunto fresco. Achei que eram veteranas no assunto porque começaram a utilizar alguns requintes de crueldade, uma enfiou o dedo na minha garganta até eu (quase) vomitar, outra virou o meu indicador para trás até (quase) quebrar e assim foi indo. Quando uma tapou meu nariz eu ameacei gritar a outra falou chega, não adianta, dessa galinha não sai mais ovo, vamos embora.

Eu não tinha mais nada para dar, era apanhar quieta, para apanhar menos. Resolveram tirar mais um retrato, para você não abrir esse botijão cheio de dentes e dizer bobagens por aí. Nada de chave de carro, não sabemos dirigir e depois tem uma pessoa esperando a gente na porta e outra esperando você também, avisaram, sai daqui lindinha, andando como de tivesse feito seu xixi feliz, vai direto pro seu carro e pega seu rumo, circulando, circulando, senão você leva outra tunda lá fora. Não esquece que a gente tem dois retratos seus, baixinha filha duma puta.

Dado por terminado o assalto e dada por terminada a seqüência de socos na cabeça, nas costas, na bunda e nos braços, alguns que começavam a doer seriamente e outros que, aplicados com algum objeto áspero, começavam a sangrar, mandaram eu levantar e eu, que tenho uma câimbra congênita, naquela hora pedi a todos os anjos que ela não se manifestasse. Jogada ali no chão, espremida entre a privada e a parede, não deu outra. Levantei, dei um passo e caí para trás, a perna dura como um taco de baseball, foi aí que a coisa azedou.

A mulher mais jovem pensou que eu queria fugir ou fingir um desmaio e tirou um canivetão, já foi me recebendo de volta do chão com um talho, esse talho nas costas que falei. Depois me acertou o antebraço e cortou bem picadinho, fazendo xis pra lá e pra cá, bem aonde a gente tem o bíceps que ficou exposto, parecia querer pular para fora. A dor profunda tirou logo da minha cabeça a antevisão de uma cicatriz em estilo mapa.

Quase chorei, me dobrei, vi o sangue aparecendo e a maiorzona não teve dúvida. Tirou o casaco e mandou que eu enfiasse e saísse logo, para ninguém ver o sangue. Respirei fundo e tentei ficar de pé, não sei explicar como a câimbra passou só sei que desde aquele dia nunca mais tive câimbra. Balancei para cá e para lá e ainda dei uma olhada para as calças jeans e para os tênis das minhas algozes. Um deles estava manchado com o meu sangue. Saí dali como uma vaca sai do matadouro, plastifiquei um sorriso nos lábios e corri para o carro. O rapaz que toma conta, meu amigo há tempos que, como todos lembram, já disse que adoro bingo, fez uma expressão esdrúxula. Perguntou está tudo bem com a senhora, respondi está tudo ótimo acabei de ganhar uma quina e tirei 10 reais que tinha no bolso e as digníssimas não tinham visto, dei correndo para me livrar dele, mas o efeito foi contrário, aí que ele grudou, tomara que a senhora ganhe sempre, se todo mundo fosse como a senhora e eu querendo ir embora e o sangue já empapando a manga da capa herdada da ladra e ele ali, me alugando.

Acho que fui ficando branca como terno de linho de coronel nordestino, mas mesmo assim, consegui ir embora. Bom, não vou ficar contando o jeito que me virei depois, porque todo mundo sabe que a gente corre pra casa de uma amiga e ela grita de pavor e o marido dela saiu, o marido sempre saiu nas horas essenciais e ela não sabe dirigir e é aquela merda.

Nesse episódio, perdi meu prazer de ir ao bingo, de ver a pracinha de sonho, as paredes caiadas tingidas do vermelho do pôr-do-sol. Não vou sozinha a banheiro mais nenhum na vida, nem de bingo, nem de cinema, nem de restaurante, nem de aeroporto, nem de posto em estrada. Sarei da câimbra congênita, que de congênita não tinha nada, era frescura pura, como se viu pela cura instantânea. Perdi 800 reais e toda vontade de ouvir, ainda uma vez na vida, a sonoridade monótona e unissonante das mocinhas que repetem números indefinidamente: 27, 43, número 2, 78, sete-oito, 82... E fiquei com o coração mais triste e nunca ninguém vai saber porque fiquei assim triste, porque coração é terra onde ninguém vai, é bem diferente de bingo, onde todo mundo vai.

* Jornalista,trabalhou no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda,  8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.



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