domingo, 30 de março de 2014

Nosso maior desafio

O maior desafio do escritor, mesmo que não se conscientize disso, é transformar – tendo por “ferramenta” apenas esse instrumento frágil e rústico, que é a palavra – a feiúra mais explícita em suprema beleza. O contrário é facílimo e não envolve maior (ou nenhuma) complexidade. Ademais, essa transformação precisa guardar verossimilhança, ser factível e lógica, para que seja crível. Poucos conseguem essa façanha, notadamente na ficção. Praticamente todo romance, conto, novela ou mesmo peça teatral e roteiro de cinema, trata do confronto multimilenar do mal com o bem, do egoísmo com a solidariedade, do belo com o feio.

A fórmula é sempre, praticamente, a mesma, embora as circunstâncias e os desfechos sejam diferentes  Todo enredo tem um vilão, que apronta poucas e boas para os heróis da história – via de regra um casal que teima por separar – mas que, no final das contas, após superar mil e uma armadilhas e tramóias, acabam por triunfar e ser “felizes para sempre”. Óbvio que a vida raramente é assim. E nela duas palavras não cabem: “nunca” e “sempre”. O autor tem o cuidado (salvo uma ou outra exceção) de urdir um destino tenebroso para o vilão, punindo-o de alguma forma (ou segregando-o da comunidade, ou fazendo com que seja preso, ou matando-o no final, isso varia).

Há quem veja beleza nessas histórias. Também vejo, mas somente em algumas, nas que guardam verossimilhança. Vejo em minha atividade (e em mim  mesmo, óbvio) enorme contradição. O escritor (e, por extensão, qualquer artista) tem como meta suprema descrever, da forma melhor que consiga, (ou, o que é mais difícil, criar) beleza. No entanto, esta raramente freqüenta suas obras e, quando se faz presente, é apenas incidentalmente. Prevalecem, invariavelmente, a feiúra, a deformidade (sobretudo a moral), a violência e a maldade. Será que a humanidade está perdendo, não somente o senso ético (este cada vez menor), mas também o estético? O que aconteceria ao mundo caso isso, desgraçadamente, viesse a se verificar?        

Otto Maria Carpeaux tratou dessa possibilidade, em um instigante ensaio, intitulado “A idéia de universidade e as idéias das classes médias”, publicado no livro “A cinza do Purgatório”. Escreveu: “Poderia chegar o dia em que ninguém compreenderia mais as fórmulas nem os poemas; em que os quadros de Rembrandt seriam pedaços de telas e as partituras de Beethoven farrapos de papel, dia de barbaria, em que a historia humana se transformaria, pela sucessão de desgraças, num formigueiro mal organizado. E este dia talvez já esteja mais próximo do que realmente pensamos”  Deus que nos livre disso ocorrer. O que já é feio, se tornaria horrível!

Escrever sobre beleza – ou tentando descrever a existente ou, o que muitíssimo mais complexo, tentando criá-la – é tarefa de gigantes estéticos e a maioria foge desse desafio, até inconscientemente. Por que? Porque para identificá-la, descrevê-la ou criá-la precisamos tê-la entranhada em nós. O filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson fez a seguinte constatação: “Podemos viajar por todo o mundo em busca do que é belo, mas se já não o trouxermos conosco, nunca o encontraremos”. Há pessoas, e não são poucas, que são condicionadas desde tenra infância, por ambientes violentos e horrorosos em que são criadas, a enxergarem feiúra em tudo e, em contrapartida, a desconfiarem da beleza e tentarem destruí-la. Conheço muitas, mas muitas mesmo com esse tipo de comportamento. Duvido que o leitor também não conheça alguém assim. Elas estão por toda a parte.

Ademais, a beleza é sumamente efêmera, eventual, episódica e passageira. Já a feiúra, salvo raríssimas exceções, é permanente e definitiva. E tende a acentuar-se à medida que o tempo passa. Ou não é o que ocorre? Uma mulher belíssima, enquanto menina, adolescente ou na maturidade, por exemplo, em poucos anos, por uma série de razões, mas principalmente as biológicas, irá envelhecer, murchar e, enfim, enfeiar. O processo contrário, todavia, nunca ocorre. A feia não vai se tornando bonita à medida que o tempo passa, até chegar à glória da suprema beleza. Há flores tão belas que diante delas chegamos a perder o fôlego, tamanho é o prazer estético que nos despertam e tão grande é a nossa emoção. Contudo, num piscar de olhos, perdem o viço, murcham, secam e morrem. Até paisagens de extrema beleza podem se degradar pela ação dos elementos ou, o que é mais comum, pela atitude estúpida do homem.

Os escritores, não raro, fogem do belo por este até prescindir de sua intervenção para conservar essa característica. Foi o que William Shakespeare constatou, quando escreveu: “Uma coisa bela persuade por si mesma, sem necessidade de um orador”. E estava errado? Claro que não! Daí minha convicção de que o maior desafio do escritor (fica implícito que também o é de qualquer outro artista) é transformar a feiúra em beleza, mas com verossimilhança e sem descambar para a pieguice.

A esse propósito, a declaração que mais me impressionou é essa, do escritor Markus Susak, colocada na boca de um dos personagens do marcante romance (que recomendo, sem pestanejar) “A menina que roubava livros: “Estou sempre achando seres humanos no que eles têm de melhor e de pior. Vejo sua feiúra e sua beleza e me pergunto: como uma coisa pode ser as duas?”. Sim, como?Apesar dos pesares, concordo, e convictamente, com  Fedor Dostoievski, que garantiu: “A beleza salvará o mundo!!!!”

Boa leitura.


O Editor

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Um comentário:

  1. Estava pensando que o escultor faz o belo. Pelo menos tira da pedra formas belas.

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