sexta-feira, 28 de março de 2014

Caderno de classificados

* Por Urariano Mota

Nos jornais existe uma seção, um caderno que reflete melhor a sociedade que as notícias da primeira página. Os anúncios classificados, que se publicam ao fim das edições, revelam sempre uma pista segura de como age e anda o mundo.

Diferentemente da primeira página, que se faz ao gosto de quem organiza e hierarquiza os fatos de todos os dias, os anúncios publicados lá no último caderno se fazem conforme a gente da cidade, que em linhazinhas breves, em espaços curtos fala. Ali, quase toda a gente pede, oferece e propõe do jeito que as coisas e as pessoas são, ou melhor, revela-se no como gostaria que coisas e pessoas fossem. Numa palavra, compra-se, ou vende-se, conforme a natureza dessa gente.

O passar das páginas dos classificados são como o movimento de um avião que não levantasse vôo sobre a cidade, como um carro com asas que visse o conjunto de habitações sem que fosse preciso subir. Como o passar de carro por uma cidadezinha muito especial, lugar onde se mostram casas de todas as cores, tamanhos e arquitetura.

O mais engraçado, nessa cidade entrevista, é o corte bruto, sem consideração ou piedade para o sofrimento ou a alegria. É a passagem sem transição da mercadoria para o afeto da gente. Ali é o lugar de uma feira original, uma feira de tudo. Da mulher de que se necessita ao telefone que se vende. Do transplante de fígado, urgente, ao coração exposto, nu, sem pudor à luz do dia. Do engraçado, do cômico, ao Correio Sentimental na seção de Serviços Profissionais, vindo logo antes do Esoterismo/Místicos.

Nessa feira vai-se da tragédia ao prosaísmo, entra-se no amor e sai-se no eletrodomésticos, porque no espírito da página quem manda é a ordem alfabética. Os Produtos Gráficos se acham ao lado das Massagistas, ainda que estas não façam tatuagens, e os Telefones se vendem junto ao Som/Vídeo, mesmo que toquem uma só canção, mecânica.

Imaginem os leitores de hoje o mundo daqui a cem anos. Imaginem a humanidade, se existir, daqui a cento e cinqüenta anos. Então imaginem nossos descendentes, se vivos forem, imaginem se eles poderão entender os hábitos que éramos, se lhes mostrarem a primeira página dos jornais de hoje. “Popularidade de Bush cai”. Nossos futuros, se houver, perguntarão, quem foi mesmo esse vegetal pequeno que se apelidava de Bush? 
Imaginem agora o leitor que nos sucederá nesses futuros anos ao ler estas linhas:

PROCURO HOMEM – Sem compromisso, 38 a 45 anos, que ainda acredite no amor.

Haverá linha mais eloqüente que expresse, a nossos pósteros, que em 2008 houve uma vez uma mulher sozinha, sofrida, que procurava alguém que AINDA acreditasse no amor? O advérbio aí é mais substancioso que nossa transformação em pó. AINDA. Isso dirá que essa mulher já sofrera, já se magoara muitas vezes, mas que era possuída pela humanidade, que não desertara da esperança. E nos compreenderão, se viverem, se lerem, quando lerem:

TENHO 50 anos. Solteira, nível superior. Procuro pessoa livre, nível superior, de bons sentimentos, de 50 a 55 anos e acredite no amor, que tenha mente aberta e esteja também à procura de alguém para sincera amizade ou algo mais. Caixa Postal...

Não importa se o anúncio quer o difícil, o quase impossível. Se quer um homem de 55 anos que não esteja casado, que não esteja farto de tudo, que assim não estando procure a mulher ideal, e para algo mais que a amizade. Não importa. Pois não houve uma vez um professor em Água Fria que aos 65 anos ainda buscava a namorada de infância? Então é possível.

Em nome da inteligência dos que nos vêm depois, nem precisamos comentar os classificados que se seguem. Eles falam por si, das taras, dos tempos e das transgressões. “Casada infiel. Ligue e confira!”. “Menina linda, rostinho de anjo e sorriso encantador. Uma colegial superdanada! Para maiores de 40...”. “Bruna - bela travesti brozeada para executivos”. “Tia & Sobrinha – Safadas e fogosas!”.... E como possível cura às frustrações dessas fantasias, uma nova, de certeiro homeopata: “Alberto – Resolve problemas amorosos.”

Os anúncios classificados, por serem comerciais, e porque vendem mercadorias, bem que poderiam ser lidos como um espelho invertido de desejos. De casas, de carros, de apartamentos, de objetos, de emprego, de sexo e de amor. De sonhos, de altos e baixos sonhos, do sublime e de quinquilharias. Feira da selva que legamos.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Mais crua, impossível, e ainda assim, uma crônica saborosa, por real, por picante.

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