sábado, 13 de agosto de 2011



Tênis x Frescobol

* Por Rubem Alves

Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa.
Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: ‘Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: ‘Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?\' Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.’
Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: ‘Eu te amo, eu te amo...’ Barthes advertia: ‘Passada a primeira confissão, ‘eu te amo\' não quer dizer mais nada.’ É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: ‘Erótica é a alma.’
O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada - palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro.
O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra - pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir... E o que errou pede desculpas; e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos...
A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá...
Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Camus anotava no seu diário pequenos fragmentos para os livros que pretendia escrever. Um deles, que se encontra nos Primeiros cadernos, é sobre este jogo de tênis:
Cena: o marido, a mulher, a galeria. O primeiro tem valor e gosta de brilhar. A segunda guarda silêncio, mas, com pequenas frases secas, destrói todos os propósitos do caro esposo. Desta forma marca constantemente a sua superioridade. O outro domina-se, mas sofre uma humilhação e é assim que nasce o ódio. Exemplo: com um sorriso: ‘Não se faça mais estúpido do que é, meu amigo\'. A galeria torce e sorri pouco à vontade. Ele cora, aproxima-se dela, beija-lhe a mão suspirando: ‘Tens razão, minha querida\'. A situação está salva e o ódio vai aumentando.
Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão... O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde.
Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem - cresce o amor... Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim...(O retorno e terno, p. 51.)



Que bom que eles se casaram!



A Mema tinha a delicadeza de uma asa de borboleta. Jovem, tinha sido muito bonita. Teve um caso de amor. Mas o pai não permitiu o casamento. O moço era pobre e da ‘prateleira de baixo’. Ela aceitou o veredicto do pai e transformou sua tristeza numa delicadeza mansa para com tudo e todos, especialmente para com os sobrinhos. Sempre que algum deles adoecia, a Mema era chamada. Todos a adoravam. Naquela manhã ela reuniu os sobrinhos e os levou para passear, longe da casa. Eles não entenderiam o que estava para acontecer. Na verdade, eles não deviam entender. Na casa o movimento era incomum, mulheres entrando e saindo de um quarto, água fervendo no fogão, o marido andando como um bobo de um lado para o outro. Até que se ouviu o choro de uma criança. O choro anunciava o nascimento. A parteira anunciou: ‘É um menino!’ A mãe ficou desapontada. Já tinha três filhos homens. Tinha rezado muito para que na sua barriga estivesse uma menina. Toda mãe sonha com uma menina como companheira e enfermeira, para quando os dias forem maus. Quando a Mema voltou com os meninos, eles foram informados pelo pai que um irmãozinho havia chegado - sem explicar nem como e nem de onde. Era o dia 15 de setembro de 1933. Assim foi: no desejo de minha mãe eu deveria ter sido uma menina... Ela mesma me disse, muito tempo depois, carinhosamente.
Hoje, decorridos sessenta e seis anos, mortos meu pai, minha mãe, Mema, parteiras, comadres, eu fico pensando sobre o enigma do casamento do meu pai e da minha mãe. Eu nunca os vi brigando. Nunca ouvi uma troca de palavras ásperas entre eles. E, no entanto, nunca pude entender por que eles se casaram. Minha impressão era de que eles viviam em mundos imensamente distantes, bolhas que não se comunicavam. Vieram-me à memória as palavras que Thomas Mann colocou na boca de José. José, vendido pelos irmãos invejosos a mercadores de escravos que iam para o Egito, diz ao seu novo dono: ‘Estamos assentados a um metro de distância um do outro. E, no entanto, ao teu redor gira um universo do qual tu és o centro, e não eu. E ao meu redor gira um universo do qual o centro sou eu, e não tu.’ (Thomas Mann, José no Egito). Era assim que eu sentia o meu pai e a minha mãe.
Meu pai era um sonhador. A fotografia dele de que mais gosto é uma em que ele está assentado numa poltrona, fumando o seu cachimbo, com olhar perdido. O cheiro e a fumaça do cachimbo têm um poder ‘desrealizador’ (essa palavra inexistente, eu acho, é de Bachelard...). A fumaça, em suas espirais azuis, vai dissolvendo os contornos nítidos das coisas. Os pintores chineses sabiam disto e, para misturar realidade com irrealidade, enchiam suas telas com neblinas. O cachimbo é um produtor de neblinas. Na neblina, ali onde a realidade fica irrealidade, o cachimbo abre o mundo dos sonhos. Meu pai, homem de origem humilde e pobre, sem árvore genealógica, foi homem de negócios bem sucedido e rico e terminou sua vida como caixeiro viajante pobre. Quem desejar saber algo sobre a alma dos caixeiros viajantes que leia a peça de Miller ‘A morte do caixeiro viajante’. Quando vi esta peça pela primeira vez, num teatro em São Paulo, o impacto foi tão grande que me senti fisicamente mal. Era a estória da vida do meu pai. Mas o fato é que, na alma, ele nunca foi nem uma coisa e nem a outra. Se tivesse podido teria sido um ator de teatro. Sei mesmo que ele chegou a fazer algumas experiências no palco, lá em Boa Esperança. Não teve sucesso como ator de palco mas foi um ator, a vida inteira. O que caracteriza um bom ator é que, ao representar, ele se esquece que está representando. Ele não representa; ele vive os papéis. Ri, chora, sofre, como se fosse verdade. Vida a fora meu pai se especializou em papéis alegres. Seu público era qualquer grupo de pessoas. Qualquer assunto era motivo para que ele criasse, através da palavra, uma trama fascinante que a todos encantava. Essa capacidade é uma grande virtude nos atores profissionais. Mas estes sabem que, ao sair do palco, o teatro terminou. Vida e teatro não são a mesma coisa. Mas meu pai não saía do palco. Não distinguia entre teatro e vida. Para ele a vida inteira era um teatro. Pagou um preço muito caro por sua vocação artística. Porque o ‘script’ da vida não é igual ao ‘script’ da peça. Por isso morreu pobre. Meu pai sonhou a vida inteira.
Minha mãe vinha de um mundo completamente diferente. Nascida num rico sobrado colonial, com vidros coloridos importados, longos corredores, salas barrocas, festas, sua família se gabava de ancestrais nobres e poderosos. Diziam, inclusive, que um dos seus membros havia sido governador da província das Minas Gerais, havendo deixado em Ouro Preto um chafariz com o seu nome - fato que nunca pude comprovar. As viagens para o exterior não eram incomuns. Minha tia Georgina, jovem de dezoito anos no final do século passado, foi sozinha aos Estados Unidos tratar de saúde, numa longa viagem de vapor. Todas as filhas eram pintoras. Todas sabiam tocar algum instrumento: bandolim, cítara (lembro-me de duas cítaras abandonadas, bordadas com madrepérola), piano. Minha mãe, além do bandolim, que abandonou, era pianista. Entendam-me. Não é que ela soubesse tocar piano e o fizesse em saraus musicais, como o fazem inúmeras mocinhas. O piano era a sua alma. Lembro-me dela tocando a Sonata ao Luar, de Beethoven, a balada em sol menor de Chopin. Minha mãe, mulher tímida e de poucas palavras, ao se assentar ao piano entrava num mundo de beleza musical a que poucas pessoas tinham acesso. Tocava, e a música criava ao seu redor um bolha encantada onde ela estava só. Meu pai ficava sempre de fora, embora fosse delicado e atencioso. Vez por outra ele dava um palpite: ‘Toque uma daquelas valsinhas boas para dormir...’ Ela sorria e tocava. Deixava sua bolha mágica para atender ao pedido da criança. Porque, esteticamente, meu pai era uma criança.
Foi minha mãe que me abriu o mundo da música. Menino ainda, ela me levava aos concertos no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Foi com ela que ouvi Brailowski, Nikita Magallof, Friedrich Gulda. Curiosamente, foi ela que ensinou o piano a uma comadre, Da. Augusta Freire, e suas filhas, em Boa Esperança. Pois Da. Augusta, num descuido do amor, ficou grávida de novo depois de muitos anos, e o menininho intruso recebeu o nome de Nelson Freire, que atualmente é um dos maiores pianistas do mundo.
Minha mãe falava pouco, muito pouco. Nós nos comunicávamos pela música. Ela ficava assentada, ouvindo, sem nada dizer, enquanto eu estudava a sonata de Chopin.
Há músicas que a gente ouve e gosta imediatamente. Sua beleza está no jardim de entrada. Ouvindo estas músicas a gente tem uma experiência imediata de comunhão: todos são igualmente comovidos. A música clássica é diferente. Sua beleza não se encontra no jardim de entrada mas num quarto fechado à chave. Quem não tem a chave não entra. A beleza da música clássica precisa ser aprendida paciente e disciplinadamente. Quem aprendeu tem a chave: entra no quarto e tem a experiência da beleza. Quem não aprendeu fica de fora e não percebe nada. Por isso a música clássica pode produzir uma dolorosa solidão.
Do meu pai, eu acho, herdei o gosto pela palavra, o prazer em criar mundos pela escrita e pela fala. O mundo do meu pai se abre para fora, para uma comunhão fácil. Da minha mãe recebi as chaves que abrem as portas que levam ao mundo da música clássica. O mundo de minha mãe se abre para dentro, onde se encontram a alegria e uma comunhão difícil que beira à solidão.
Não sei por que se casaram. Mas, que bom que se casaram! Porque, se não tivessem se casado, eu não teria nascido naquela manhã do dia 15 de setembro de 1933. (O amor que acende a lua, p.159).



Em defesa da vida



É um homem grande, 1.90 de altura; obviamente, um homem forte. Seus cabelos castanhos já estão grisalhos. E tem um grande bigode. Seus olhos profundos são azuis e bondosos. E o seu piscar revela humor. Um veadinho se esfrega nele pedindo carinho e sua mão grande deixa a caneta sobre a mesa e delicadamente agrada o bichinho. Lá fora, os crocodilos algumas vezes dormem com suas enormes mandíbulas abertas. E há os hipopótamos, os pelicanos, a vegetação impenetrável que se reflete nas águas barrentas do rio.
A aparência é de um homem solidamente plantado nesse mundo. Mas não é verdade. Seu coração e sua cabeça se movem de acordo com uma lógica estranha de um outro mundo que só ele vê.
Nasceu em 1875, numa aldeia da Alsácia, filho de um pastor protestante. Desde muito cedo ficou claro que ele era diferente. Sua sensibilidade para a música chegava à dor. Ele mesmo conta que, à primeira vez que ouviu duas vozes cantando em dueto - ele era muito pequeno ainda - ele teve de se encostar na parede para não cair. Outra vez, ouvindo pela primeira vez um conjunto de metais ele quase desmaiou por excesso de prazer. Com cinco anos começou a tocar piano. Mas logo se apaixonou pelo órgão de tubos da igreja na qual o seu pai era pastor. Aos nove anos já era o organista oficial da igreja, e tocava para os serviços religiosos.
Sentimento amoroso idêntico lhe provocavam os animais. Ele relata que, mesmo antes de ir para a escola, lhe era incompreensível o fato de que as orações da noite que sua mãe orava com ele apenas os seres humanos fossem mencionados. ‘Assim, quando minha mãe terminava as orações e me beijava, eu orava silenciosamente uma oração que compus para todas as criaturas vivas: \'Oh, Pai, celeste, protege e abençoa todas as coisas que vivem; guarda-as do mal e faz com que elas repousem em paz.\'‘
Ele conta de um incidente acontecido quando ele tinha sete ou oito anos de idade. Um amigo mais velho ensinou-o a fazer estilingues. Por pura brincadeira. Mas chegou um momento terrível. O amigo convidou-a a ir para o bosque matar alguns pássaros. Pequeno, sem jeito de dizer não, ele foi. Chegaram a uma árvore ainda sem folhas onde pássaros estavam cantando. Então o amigo parou, pôs uma pedra no estilingue e se preparou para o tiro. Aterrorizado ele não tinha coragem de fazer nada. Mas nesse momento os sinos da igreja começaram a tocar, ele se encheu de coragem e espantou os pássaros.
Seu amor pelas coisas vivas não era apenas amor pelos animais. Ele sabia que por vezes era preciso que coisas vivas fossem mortas para que outros vivessem. Por exemplo, para que as vacas vivessem os fazendeiros tinham de cortar a relva florida com ceifadeiras. Mas ele sofria vendo que, tendo terminado o trabalho de cortar a relva, ao voltar para a casa, as suas ceifadeiras fossem esmagando flores, sem necessidade. Também as flores têm o direito de viver.
Também não podia contemplar o sofrimento dos animais em cativeiro. ‘Detesto exibições de animais amestrados. Por quanto sofrimento aquelas pobres criaturas têm de passar a fim de dar uns poucos momentos de prazer a homens vazios de qualquer pensamento ou sentimento por eles.’
O nome desse jovem era Albert Schweitzer. Doutorou-se em música, tornou-se o maior intérprete de Bach da Europa, dando concertos continuamente. Doutorou-se em teologia e escreveu um dos mais importantes livros de teologia desse século. Doutorou-se também em filosofia, e era professor na universidade de Estrasburgo, sendo também pastor e pregador.
Schweitzer tinha tudo aquilo que uma pessoa normal pode desejar. Ele era reconhecido por todos. Mas havia uma frase de Jesus que o seguia sempre: ‘A quem muito se lhe deu, muito se lhe pedirá.’ E, aos vinte anos, ele fez um trato com Deus. Até os trinta anos ele iria fazer tudo aquilo que lhe dava prazer: daria concertos, falaria sobre literatura, sobre teologia, sobre filosofia. Aos trinta anos ele iniciaria um novo caminho. E foi o que ele fez. Aos trinta anos entrou para a escola de medicina, doutorou-se em medicina, e mudou-se para a África, para tratar de uns pobres homens atacados pelas doenças e abandonados. E lá passou o resto de sua vida.
É preciso entender que Schweitzer não era só um médico curando doentes. Ele não se conformaria com isso. Dentro dele viviam a música, a filosofia, o misticismo, a ética. Schweitzer sabia que somente o pensamento muda as pessoas. E o que ele mais desejava era descobrir o princípio que vivia encarnado nele. E ele conta que foi numa noite - ele e remadores navegavam pelo rio para chegar a uma outra aldeia - seu pensamento não parava - e ele se perguntava - ‘qual é o princípio ético?’ De repente, como um relâmpago, apareceu na sua cabeça a expressão: ‘reverência pela vida.’ Tudo o que é vivo deseja viver. Tudo o que é vivo tem o direito de viver. Nenhum sofrimento pode ser imposto sobre as coisas vivas, para satisfazer o desejo dos homens.
Há algo estranho na psicologia de Schweitzer. Um dos maiores desejos da alma humana - de todos - é o desejo de reconhecimento. Na Europa Schweitzer era admirado universalmente: organista, filósofo, teólogo, escritor. Aos vinte e poucos anos seu nome já era símbolo. Aí toma uma decisão que o levaria para longe de todos os olhos que o admiravam: a absoluta solidão de uma aldeia miserável. Hoje uma decisão como a dele seria imediatamente notada: os jornais e a televisão logo fariam brilhar a sua imagem de Cavaleiro Solitário - e ele apareceria como herói. Seria grande, imensamente grande na sua renúncia! Também as renúncias podem ser motivo de vaidade! (A esse respeito relembro a última cena do filme O Advogado do Diabo. Merece ser visto de novo.) Mas ele opta pela invisibilidade, a solidão, longe de todos os olhos e de todos os aplausos. Isso só tem uma explicação: ele era, antes de tudo, um místico. O que lhe importava não era o brilho narcísico mas a consciência de ser verdadeiro com o princípio de ‘reverência pela vida’, o seu mais alto princípio religioso.
Esse princípio, Schweitzer viveu intensamente. Não é difícil ter reverência pelas coisas fracas, a relva, os insetos, os animais. Fracos, eles não têm o poder de nos resistir. Difícil é ter reverência pelos homens fortes, que se encontram ao nosso lado. Jesus ordenou ‘amar o próximo’. Porque é fácil amar o distante. O próximo é aquele que está no meu caminho, que tem o poder de me dizer não. Mais difícil que amar os doentes, que são carência pura, fraqueza pura, dependência pura, mendicância pura, é amar aqueles que estão ao meu lado e que são tão fortes quanto eu. Reverência pelos que estão ao meu lado. Se Schweitzer se relacionou com os pobres negros doentes por meio da compaixão, ele se relacionou com seus próximos, iguais, companheiros de hospital por meio de amizade. E ele formula, na sua Ética, o princípio de que ‘um homem nunca pode ser sacrificado para um fim.’
Schweitzer não era um ser desse mundo. Talvez ele tenha compreendido isso e que essa tenha sido uma das razões porque ele saiu do mundo civilizado, se embrenhando nas selvas da África. No mundo civilizado, das organizações, será possível ter reverência pelo próximo? Na lógica das organizações não há ‘próximos’ nem amigas. A lógica das organizações diz: ‘cada funcionário é apenas um meio para o fim da organização, não importa quão grandioso ele seja!’ Nas organizações os sinos das igrejas não tocam para impedir que o pássaro seja morto. (O amor que acende a lua, p. 25.)

* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador

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