Despertador da memória
Já chamei-a de “velha louca”. Pudera! “Joga comida fora e guarda trapos velhos”. Já acusei-a de distorcer as coisas, aumentando as lembranças boas e reduzindo a dimensões ínfimas as que nos atormentaram, incomodaram e ainda incomodam. Falei coisas boas e ruins a seu respeito. E não sou, somente, eu que me preocupo com ela e escrevo tanto a seu respeito. Inúmeros escritores também já o fizeram e ainda o fazem com alta frequência.
George Sand – pseudônimo da escritora francesa Amadine-Aurore-Lucile Dupin, por sinal baronesa, de Dudevant – famosa, também, por manter ligação amorosa com o compositor polonês Fréderic Chopin, classificou-a de “perfume da alma”. O padre Antonio Vieira constatou que seu efeito é o de “levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam conosco”.
Você, leitor inteligente, já percebeu a o quê estou me referindo. É a ela mesmo, à memória. Hoje, todavia, não irei tratar propriamente dela, mas daquilo que a desperta. Poderia dizer, para usar metáfora um tanto bélica, que é o seu “gatilho”. Bem, não gostei dessa comparação. É melhor classificá-la apenas de despertador, ou de despertadora.
O escritor Jules Renard escreveu certa feita: “Nas águas verdes da memória, tudo cai. E é necessário remexer. Algumas coisas tornam a subir à superfície”. É sobre esse objeto para mexer as águas turvas e trazer à tona o que está bem no fundo que vou tratar. Pode ser uma pá, um graveto, uma colher de pau ou algum objeto semelhante qualquer. Todas essas metáforas, talvez inadequadas e impróprias, são para caracterizar a música.
Seu poder evocatório não é novidade para ninguém. Todos temos alguma canção, alguma melodia, algumas composição especial que mexe conosco, que aguça nossa sensibilidade e que traz de imediato, à memória, fatos e pessoas que de alguma forma marcaram nossas vidas. São os “objetos” (e cada um nomeie o seu), com os quais remexemos as águas turvas e esverdeadas da memória, para trazer à superfície o que se depositou bem no fundo.
Tenho músicas que deflagram essa magia. Por exemplo, sempre que ouço a “Barcarola”, de Jacques Offenbach, vem de imediato à minha memória uma lembrança que até hoje não sei se positiva ou negativa. Explico. Estudei, quando adolescente, em um colégio interno misto e ali apaixonei-me, como nunca mais aconteceu com a mesma intensidade, por uma determinada menina. Foi paixão fulminante e avassaladora! Confesso que nunca fui correspondido. Ao adolescente de 16 anos, idade que eu tinha na ocasião, isso pouco (na verdade nada) importava. Estava apaixonadíssimo por ela e isso me bastava. Só a possibilidade de vê-la – nas aulas, no refeitório, no pátio etc. – já me satisfazia. Era, para mim, a visão do próprio paraíso. Não conseguiria descrever o que sentia. Não há palavras para tal.
Findo o ano letivo, todavia, e com ele o curso que então eu fazia, veio a separação. Fui para outro colégio, da mesma organização, para onde minha amada não foi. Na recepção aos alunos novatos, na nova escola, no salão nobre da instituição, foram apresentados vários sketchs, declamações de poesia, peças de piano, canto etc. Uma dessas teatralizações baseava-se na tal composição “Barcarola”, de Offenbach, que mencionei.
Naquele momento, sentado no auditório, apreciando a apresentação, senti-me sozinho, o homem mais solitário do mundo, abandonado, carente de afeto e, principalmente, tomado por uma saudade e de uma tristeza como nunca antes e nunca depois senti, da minha amada.
Disfarçadamente, chorei. E muito. Por isso, essa música, por si só belíssima, não só me trouxe à memória quem tanto amei, como ela própria, a composição de Offenjbach, ficou gravada a ferro e fogo, profundamente, para sempre, no fundo da alma. Até hoje, quando a ouço, não consigo me conter. Uma ou mais lágrimas rolam-me face abaixo. Talvez vocês considerem esse episódio um tanto (como posso dizer?), piegas. Não sei se têm ou não razão. Querem saber? Pouco importa! Passado meio século, essa passagem da minha adolescência ainda é importantíssima em minha vida.
Música... Como é poderoso seu caráter evocatório! Outras tantas melodias fazem, no meu caso, esse papel de remexer as águas turvas da memória e trazem à tona o que está depositado no leito, bem no fundo. A canção folclórica irlandesa, “Danny Boy”, é uma delas. O folclórico “Peixe vivo”, que tanto agradava o saudoso presidente Juscelino Kubitschek, é outra. “Love letters in the sand” igualmente é, assim como a popularíssima “canzoneta” italiana “Santa Lucia”, notadamente quando interpretada por Mário Lanza. E há, ainda, uma longa lista de composições que atuam como despertadoras de lembranças suaves, porém tristes, por não trazerem de volta, no plano concreto, acontecimentos e pessoas que tanto me encantaram.
Música, música, música... Para Victor Hugo, ela é “o verbo do futuro”. O escritor italiano Massimo Azeglio indaga, em tom de afirmação, se ela não é “uma língua perdida, da qual esquecemos o sentido e conservamos, apenas, a harmonia?”. Certamente que é. Ou se não é, fica sendo. “Se non é vero é bem trovato”.
Mas a melhor definição que encontrei, nos livros e em textos esparsos que pesquisei, foi a do compositor (e que compositor!), Ludwig van Beethoven. Pudera! Poucos conheceram tanto sua magia como ele, que compôs tantas e tantas e tantas coisas belas e grandiosas. Para este gênio alemão, “a música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos. A melodia é a vida sensível da poesia”. E não é?! É, sobretudo, magnífica “despertadora” da memória, fazendo com que ela traga depressa, com, velocidade maior até do que a da luz (impossibilidade física), fatos e pessoas que nos marcaram.
Boa leitura.
O Editor.
Já chamei-a de “velha louca”. Pudera! “Joga comida fora e guarda trapos velhos”. Já acusei-a de distorcer as coisas, aumentando as lembranças boas e reduzindo a dimensões ínfimas as que nos atormentaram, incomodaram e ainda incomodam. Falei coisas boas e ruins a seu respeito. E não sou, somente, eu que me preocupo com ela e escrevo tanto a seu respeito. Inúmeros escritores também já o fizeram e ainda o fazem com alta frequência.
George Sand – pseudônimo da escritora francesa Amadine-Aurore-Lucile Dupin, por sinal baronesa, de Dudevant – famosa, também, por manter ligação amorosa com o compositor polonês Fréderic Chopin, classificou-a de “perfume da alma”. O padre Antonio Vieira constatou que seu efeito é o de “levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam conosco”.
Você, leitor inteligente, já percebeu a o quê estou me referindo. É a ela mesmo, à memória. Hoje, todavia, não irei tratar propriamente dela, mas daquilo que a desperta. Poderia dizer, para usar metáfora um tanto bélica, que é o seu “gatilho”. Bem, não gostei dessa comparação. É melhor classificá-la apenas de despertador, ou de despertadora.
O escritor Jules Renard escreveu certa feita: “Nas águas verdes da memória, tudo cai. E é necessário remexer. Algumas coisas tornam a subir à superfície”. É sobre esse objeto para mexer as águas turvas e trazer à tona o que está bem no fundo que vou tratar. Pode ser uma pá, um graveto, uma colher de pau ou algum objeto semelhante qualquer. Todas essas metáforas, talvez inadequadas e impróprias, são para caracterizar a música.
Seu poder evocatório não é novidade para ninguém. Todos temos alguma canção, alguma melodia, algumas composição especial que mexe conosco, que aguça nossa sensibilidade e que traz de imediato, à memória, fatos e pessoas que de alguma forma marcaram nossas vidas. São os “objetos” (e cada um nomeie o seu), com os quais remexemos as águas turvas e esverdeadas da memória, para trazer à superfície o que se depositou bem no fundo.
Tenho músicas que deflagram essa magia. Por exemplo, sempre que ouço a “Barcarola”, de Jacques Offenbach, vem de imediato à minha memória uma lembrança que até hoje não sei se positiva ou negativa. Explico. Estudei, quando adolescente, em um colégio interno misto e ali apaixonei-me, como nunca mais aconteceu com a mesma intensidade, por uma determinada menina. Foi paixão fulminante e avassaladora! Confesso que nunca fui correspondido. Ao adolescente de 16 anos, idade que eu tinha na ocasião, isso pouco (na verdade nada) importava. Estava apaixonadíssimo por ela e isso me bastava. Só a possibilidade de vê-la – nas aulas, no refeitório, no pátio etc. – já me satisfazia. Era, para mim, a visão do próprio paraíso. Não conseguiria descrever o que sentia. Não há palavras para tal.
Findo o ano letivo, todavia, e com ele o curso que então eu fazia, veio a separação. Fui para outro colégio, da mesma organização, para onde minha amada não foi. Na recepção aos alunos novatos, na nova escola, no salão nobre da instituição, foram apresentados vários sketchs, declamações de poesia, peças de piano, canto etc. Uma dessas teatralizações baseava-se na tal composição “Barcarola”, de Offenbach, que mencionei.
Naquele momento, sentado no auditório, apreciando a apresentação, senti-me sozinho, o homem mais solitário do mundo, abandonado, carente de afeto e, principalmente, tomado por uma saudade e de uma tristeza como nunca antes e nunca depois senti, da minha amada.
Disfarçadamente, chorei. E muito. Por isso, essa música, por si só belíssima, não só me trouxe à memória quem tanto amei, como ela própria, a composição de Offenjbach, ficou gravada a ferro e fogo, profundamente, para sempre, no fundo da alma. Até hoje, quando a ouço, não consigo me conter. Uma ou mais lágrimas rolam-me face abaixo. Talvez vocês considerem esse episódio um tanto (como posso dizer?), piegas. Não sei se têm ou não razão. Querem saber? Pouco importa! Passado meio século, essa passagem da minha adolescência ainda é importantíssima em minha vida.
Música... Como é poderoso seu caráter evocatório! Outras tantas melodias fazem, no meu caso, esse papel de remexer as águas turvas da memória e trazem à tona o que está depositado no leito, bem no fundo. A canção folclórica irlandesa, “Danny Boy”, é uma delas. O folclórico “Peixe vivo”, que tanto agradava o saudoso presidente Juscelino Kubitschek, é outra. “Love letters in the sand” igualmente é, assim como a popularíssima “canzoneta” italiana “Santa Lucia”, notadamente quando interpretada por Mário Lanza. E há, ainda, uma longa lista de composições que atuam como despertadoras de lembranças suaves, porém tristes, por não trazerem de volta, no plano concreto, acontecimentos e pessoas que tanto me encantaram.
Música, música, música... Para Victor Hugo, ela é “o verbo do futuro”. O escritor italiano Massimo Azeglio indaga, em tom de afirmação, se ela não é “uma língua perdida, da qual esquecemos o sentido e conservamos, apenas, a harmonia?”. Certamente que é. Ou se não é, fica sendo. “Se non é vero é bem trovato”.
Mas a melhor definição que encontrei, nos livros e em textos esparsos que pesquisei, foi a do compositor (e que compositor!), Ludwig van Beethoven. Pudera! Poucos conheceram tanto sua magia como ele, que compôs tantas e tantas e tantas coisas belas e grandiosas. Para este gênio alemão, “a música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos. A melodia é a vida sensível da poesia”. E não é?! É, sobretudo, magnífica “despertadora” da memória, fazendo com que ela traga depressa, com, velocidade maior até do que a da luz (impossibilidade física), fatos e pessoas que nos marcaram.
Boa leitura.
O Editor.
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Não conhecia a música da sua vida. Fui ao YouTube conhecê-la. Ouvi duas vezes e não me disse muita coisa. O fato, a circunstâncias, as pessoas, os cheiros, a luz e as cores fazem das nossas músicas inesquecíveis o que elas realmente são: marcantes. Pode-se viajar bem nas suas lembranças, Pedro. Eu gosto de fazer isso: ir longe nas suas reflexões.
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