Sinhazinha
* Por Marco Albertim
Os soldados instalaram a metralhadora no chão, o cano apoiado na forqueta de ferro; em cima da forqueta, a argola boleada, dando mobilidade à mira. Um soldado com duas divisas em cada ombro da farda verde-oliva, deitou-se atrás da arma; uma mão no gatilho, outra sobre o pente de balas. Mais atrás e em volta, outros soldados. Junto ao metralhador, agachado, um sargento.
- Só atire quando ouvir a ordem – advertiu o sargento.
O grupo chegara logo cedo, com a madrugada preguiçando. O alcaguete informara que no sindicato, a reunião rompera a noite; muitos camponeses, por morarem nos engenhos distantes, dormiram sobre a caliça dos tijolos da sala. O sindicato, uma casa com uma porta e duas janelas na alvenaria deformada, tinha a frente para a Praça do Carmo, para uma das esquinas da praça. Os soldados puseram-se na esquina anterior, mais distante do sindicato. A distância deles para a sede, era de 500 metros. Ao lado do sindicato, uma igreja em desuso, e outra ao lado desta, a do Convento do Carmo; onde frades carmelitas se abrigavam entre grossas paredes seculares, e a enfiada de 165 contas do rosário. Rezando todos, não se sabe se para os camponeses ou para a súbita tropa.
O certo é que Sinhazinha vira do jardim de sua casa, o jipe trazendo a metralhadora, dois militares na frente e quatro atrás; no meio, a matraca sinistra. Na retaguarda, mais jipes na formação do comboio. No casarão barroco, Sinhazinha fora chamada, quando moça, de sinhá-moça. Não conseguira se casar, daí que envelheceu também no sem-fim de ave-marias de seu rosário. Segurando o terço e a mangueira com o jorro d’água, estacou para apreciar os moços com uniformes da mesma cor das folhas de seu jardim.
Parou de rezar, mas teve o cuidado de pôr o rosário no bolso largo de seu vestido, fechado por um botão esférico cor-de-rosa, combinando com a roupa. Em frente a sua casa, o sobrado da Cooperativa dos Plantadores de Cana, de ordinário para discussões sobre o preço de cada tonelada de cana entregue às duas únicas usinas de Goiana, dera lugar a interrogatórios de presos.
Sinhazinha pouco se importava com a rotina da cooperativa, posto que também ela, dona de canavial, tinha seu preposto com lápis e caderno para fazer os cálculos.
- Hoje não tem prestação de contas? – perguntou ela a Manoel, o preposto.
- Tem. Hoje quem presta contas é o povo do sindicato.
- Gente sem estilo!
Ajeitou os óculos sobre o nariz, a velha; mirou à frente de um grupo de camponeses, custodiados pela polícia, um velho conhecido, dono de mercearia, comerciante de muitos secos e nenhum molhado. Queria aumentar os negócios, abrir filial na rua da Feira, visto que sua venda se fincara na periferia, com fregueses de poucos recursos.
- Aquele é Bia, o comerciante? – retomou a velha.
- É. Tá prestando serviço à Junta de Inquérito. Vai ser nomeado carcereiro da Cadeia Pública.
Às nove horas o ajuntamento cresceu na calçada da cooperativa. De pickups e jipes, desciam senhores de engenho, seus filhos, capatazes e alguns soldados; os soldados, todos contentes por poderem se ombrear com os filhos de aristocratas da cana. Fernando Filizola apeou de uma pickup; trajando calça e camisa de cáqui azul, chapéu de feltro escuro acentuando-lhe o perfil de banguezeiro mandão. Dezoito anos, um bigode ralo e uma metralhadora com a alça num dos ombros.
A pickup em que viera, passara em frente à Saboeira. Uma faixa branca, com letras festivas, anunciava o baile do próximo domingo. Ali, Filizola, com revólver na cintura, nutrira o costume de abrir a carteira para pagar ao garçom de sorriso submisso. Olhou em volta, viu a namorada conversando com as amigas, todas com a farda azul e branca do Colégio Sagrada Família.
- Me leva para o baile – quis saber dele.
- Levo!
- Tá é bonito... – Apreciou os dois, ela: o namorado e a metralhadora.
Sinhazinha os vira.
- Que belo par, Fernandinho e Cenira.
- Ele sabe administrar o engenho – completou o preposto.
Os soldados na praça, em volta da metralhadora grande, mantinham-se na mesma posição. Sinhazinha, àquela altura, almoçara, servida pela não menos longeva Severina. A negra agregara-se a casa desde o tempo dos pais de Sinhazinha; também mantivera a virgindade.
- Severina! Prepare uns sanduíches para os soldados na praça.
Com a bandeja cheia, a negra fez menção de distribuir o lanche. Na outra mão, um jarro de vidro com suco de abacaxi; os copos, repartiria-os de outra levada. Ao cruzar a porta, ouviu:
- Não! Eu levo...
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
Os soldados instalaram a metralhadora no chão, o cano apoiado na forqueta de ferro; em cima da forqueta, a argola boleada, dando mobilidade à mira. Um soldado com duas divisas em cada ombro da farda verde-oliva, deitou-se atrás da arma; uma mão no gatilho, outra sobre o pente de balas. Mais atrás e em volta, outros soldados. Junto ao metralhador, agachado, um sargento.
- Só atire quando ouvir a ordem – advertiu o sargento.
O grupo chegara logo cedo, com a madrugada preguiçando. O alcaguete informara que no sindicato, a reunião rompera a noite; muitos camponeses, por morarem nos engenhos distantes, dormiram sobre a caliça dos tijolos da sala. O sindicato, uma casa com uma porta e duas janelas na alvenaria deformada, tinha a frente para a Praça do Carmo, para uma das esquinas da praça. Os soldados puseram-se na esquina anterior, mais distante do sindicato. A distância deles para a sede, era de 500 metros. Ao lado do sindicato, uma igreja em desuso, e outra ao lado desta, a do Convento do Carmo; onde frades carmelitas se abrigavam entre grossas paredes seculares, e a enfiada de 165 contas do rosário. Rezando todos, não se sabe se para os camponeses ou para a súbita tropa.
O certo é que Sinhazinha vira do jardim de sua casa, o jipe trazendo a metralhadora, dois militares na frente e quatro atrás; no meio, a matraca sinistra. Na retaguarda, mais jipes na formação do comboio. No casarão barroco, Sinhazinha fora chamada, quando moça, de sinhá-moça. Não conseguira se casar, daí que envelheceu também no sem-fim de ave-marias de seu rosário. Segurando o terço e a mangueira com o jorro d’água, estacou para apreciar os moços com uniformes da mesma cor das folhas de seu jardim.
Parou de rezar, mas teve o cuidado de pôr o rosário no bolso largo de seu vestido, fechado por um botão esférico cor-de-rosa, combinando com a roupa. Em frente a sua casa, o sobrado da Cooperativa dos Plantadores de Cana, de ordinário para discussões sobre o preço de cada tonelada de cana entregue às duas únicas usinas de Goiana, dera lugar a interrogatórios de presos.
Sinhazinha pouco se importava com a rotina da cooperativa, posto que também ela, dona de canavial, tinha seu preposto com lápis e caderno para fazer os cálculos.
- Hoje não tem prestação de contas? – perguntou ela a Manoel, o preposto.
- Tem. Hoje quem presta contas é o povo do sindicato.
- Gente sem estilo!
Ajeitou os óculos sobre o nariz, a velha; mirou à frente de um grupo de camponeses, custodiados pela polícia, um velho conhecido, dono de mercearia, comerciante de muitos secos e nenhum molhado. Queria aumentar os negócios, abrir filial na rua da Feira, visto que sua venda se fincara na periferia, com fregueses de poucos recursos.
- Aquele é Bia, o comerciante? – retomou a velha.
- É. Tá prestando serviço à Junta de Inquérito. Vai ser nomeado carcereiro da Cadeia Pública.
Às nove horas o ajuntamento cresceu na calçada da cooperativa. De pickups e jipes, desciam senhores de engenho, seus filhos, capatazes e alguns soldados; os soldados, todos contentes por poderem se ombrear com os filhos de aristocratas da cana. Fernando Filizola apeou de uma pickup; trajando calça e camisa de cáqui azul, chapéu de feltro escuro acentuando-lhe o perfil de banguezeiro mandão. Dezoito anos, um bigode ralo e uma metralhadora com a alça num dos ombros.
A pickup em que viera, passara em frente à Saboeira. Uma faixa branca, com letras festivas, anunciava o baile do próximo domingo. Ali, Filizola, com revólver na cintura, nutrira o costume de abrir a carteira para pagar ao garçom de sorriso submisso. Olhou em volta, viu a namorada conversando com as amigas, todas com a farda azul e branca do Colégio Sagrada Família.
- Me leva para o baile – quis saber dele.
- Levo!
- Tá é bonito... – Apreciou os dois, ela: o namorado e a metralhadora.
Sinhazinha os vira.
- Que belo par, Fernandinho e Cenira.
- Ele sabe administrar o engenho – completou o preposto.
Os soldados na praça, em volta da metralhadora grande, mantinham-se na mesma posição. Sinhazinha, àquela altura, almoçara, servida pela não menos longeva Severina. A negra agregara-se a casa desde o tempo dos pais de Sinhazinha; também mantivera a virgindade.
- Severina! Prepare uns sanduíches para os soldados na praça.
Com a bandeja cheia, a negra fez menção de distribuir o lanche. Na outra mão, um jarro de vidro com suco de abacaxi; os copos, repartiria-os de outra levada. Ao cruzar a porta, ouviu:
- Não! Eu levo...
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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