A resistência
* Por Marco Albertim
O prefeito não quis se levantar da poltrona; apoiou os braços no birô, sequer foi à sacada no pavimento superior do velho sobrado. Para reafirmar sua autoridade. Se tivesse se debruçado na janela, teria visto homens e mulheres, de chapéus na cabeça, cobertos, dos pés aos ombros, da chita ordinária desbotada no calor da lavoura. As mulheres, com vestidos abaixo dos joelhos, exibiam estamparias acinzadas, em nada parecidas com a flor das algarobeiras que lhes davam abrigo no descanso da peleja com a terra.
Zequinha de Abreu socorreu-se nos olhos de pavor do secretário que, sem olhar para trás, tinha às costas pelo menos vinte homens movendo-se sobre chinelos de borracha e tiras de couro. Alguns, armados com espingardas de cano curto, com chumbo socado. Zezé da Galileia, tão sereno quanto a indiferença aos setenta anos de vida difícil, entregou sua arma a outro de seu lado; em seguida, deu três passos rumo ao birô do prefeito.
- O senhor não vai fazer nada contra nós, senão nós reage. Mas tem o direito de saber o que tá acontecendo.
Abreu se escudara na poltrona para não dar conta do próprio medo. Mas com o gesto de mão de Zezé da Galileia, apeou-se e seguiu-o até à sacada. Zezé não mostrou orgulho nos olhos, não queria ser julgado cangaceiro. O prefeito já estivera ali discursando para uma multidão dócil; tanto que se reelegera. Agora, inda que de cima, mirou-se pequeno, menor que a utilidade ingênua de seus eleitores. Diante de si, sob a perquirição de seus olhos, a rua mostrou-se estranhamente hostil com o balbucio ruidoso dos moradores de engenhos. Quando a multidão o avistou, os homens ergueram com as mãos suas armas, a maioria foices.
Arriscou, o alcaide, uma pergunta:
- Não recebeu seu lote de terra, Zezé?
- Não. Tenho setenta anos. O governo só deu terra a quem tem de cinquenta anos abaixo.
- Eu não sabia.
- O senhor sabia. Por isso tá esperando as tropas pra prender a gente. Nós vamos resistir.
Os dois voltaram à sala. Antes de sentar, o prefeito olhou para a folha do calendário atrás de sua poltrona – 31 de março de 1964. Nos ouvidos de Zezé zuniu o choque das folhas de ferro das foices, afiando-se em mãos hábeis. Nos de Abreu, o baque trovoso de coturnos nos pés da milícia vinda do quartel.
- Os soldados logo estarão aqui. Mande seus homens pra casa, pra evitar o pior.
A três quarteirões dali, numa rua transversal à da prefeitura, Zé dos Prazeres, à frente de duzentos camponeses, tinha sob seu domínio os cinquenta milicianos da Polícia Militar. Não se apossara dos fuzis e revólveres, mas os mantivera numa cela vazia, com grades de ferro; fechara-a e mantivera a chave no seu bolso. Os soldados, com o comandante no centro, puseram-se de pé, num círculo fechado; nos fundos do quartel, em volta de bananeiras na margem dos três muros altos.
A invasão fora súbita, feito um tropel repentino. Os soldados, afeitos à rotina cinzenta entre as paredes úmidas, apenas se assustaram vendo rostos terrosos, apáticos a desgostos. Do lado de fora, uma rala multidão se apinhara curiosa, balbuciante. Ninguém se atrevia a entrar. Os milicianos, por isso, não contavam com o auxílio de paisanos.
- A linha do trem, Zezé. As tropas vão chegar pela ferrovia.
O juízo do prefeito espreitava cada nicho de Vitória de Santo Antão.
A estação fora ocupada por homens com apenas peixeiras na bainha, nas cinturas. O telégrafo, proibido de operar.
- O rádio, Zezé. Logo a notícia vai se espalhar pelos rádios.
O estúdio da emissora de rádio, também ocupado; o microfone fora do ar. A Central Telefônica e os postos de gasolina.
Cinco mil camponeses tinham o controle de Vitória de Santo Antão.
Dia seguinte, numa caminhonete da Liga da Galileia, Zé dos Prazeres, junto a meia dúzia de homens, segue para Recife. Vai pedir ajuda ao governador Miguel Arraes. O carro sequer tem acesso à rua das Florentinas, em frente à Praça da República. Caminha sozinho para não ser notado. Na esquina, do lado contrário, vê o governador ser levado por homens armados, fardados, para dentro de um escasso Volkswagen.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
O prefeito não quis se levantar da poltrona; apoiou os braços no birô, sequer foi à sacada no pavimento superior do velho sobrado. Para reafirmar sua autoridade. Se tivesse se debruçado na janela, teria visto homens e mulheres, de chapéus na cabeça, cobertos, dos pés aos ombros, da chita ordinária desbotada no calor da lavoura. As mulheres, com vestidos abaixo dos joelhos, exibiam estamparias acinzadas, em nada parecidas com a flor das algarobeiras que lhes davam abrigo no descanso da peleja com a terra.
Zequinha de Abreu socorreu-se nos olhos de pavor do secretário que, sem olhar para trás, tinha às costas pelo menos vinte homens movendo-se sobre chinelos de borracha e tiras de couro. Alguns, armados com espingardas de cano curto, com chumbo socado. Zezé da Galileia, tão sereno quanto a indiferença aos setenta anos de vida difícil, entregou sua arma a outro de seu lado; em seguida, deu três passos rumo ao birô do prefeito.
- O senhor não vai fazer nada contra nós, senão nós reage. Mas tem o direito de saber o que tá acontecendo.
Abreu se escudara na poltrona para não dar conta do próprio medo. Mas com o gesto de mão de Zezé da Galileia, apeou-se e seguiu-o até à sacada. Zezé não mostrou orgulho nos olhos, não queria ser julgado cangaceiro. O prefeito já estivera ali discursando para uma multidão dócil; tanto que se reelegera. Agora, inda que de cima, mirou-se pequeno, menor que a utilidade ingênua de seus eleitores. Diante de si, sob a perquirição de seus olhos, a rua mostrou-se estranhamente hostil com o balbucio ruidoso dos moradores de engenhos. Quando a multidão o avistou, os homens ergueram com as mãos suas armas, a maioria foices.
Arriscou, o alcaide, uma pergunta:
- Não recebeu seu lote de terra, Zezé?
- Não. Tenho setenta anos. O governo só deu terra a quem tem de cinquenta anos abaixo.
- Eu não sabia.
- O senhor sabia. Por isso tá esperando as tropas pra prender a gente. Nós vamos resistir.
Os dois voltaram à sala. Antes de sentar, o prefeito olhou para a folha do calendário atrás de sua poltrona – 31 de março de 1964. Nos ouvidos de Zezé zuniu o choque das folhas de ferro das foices, afiando-se em mãos hábeis. Nos de Abreu, o baque trovoso de coturnos nos pés da milícia vinda do quartel.
- Os soldados logo estarão aqui. Mande seus homens pra casa, pra evitar o pior.
A três quarteirões dali, numa rua transversal à da prefeitura, Zé dos Prazeres, à frente de duzentos camponeses, tinha sob seu domínio os cinquenta milicianos da Polícia Militar. Não se apossara dos fuzis e revólveres, mas os mantivera numa cela vazia, com grades de ferro; fechara-a e mantivera a chave no seu bolso. Os soldados, com o comandante no centro, puseram-se de pé, num círculo fechado; nos fundos do quartel, em volta de bananeiras na margem dos três muros altos.
A invasão fora súbita, feito um tropel repentino. Os soldados, afeitos à rotina cinzenta entre as paredes úmidas, apenas se assustaram vendo rostos terrosos, apáticos a desgostos. Do lado de fora, uma rala multidão se apinhara curiosa, balbuciante. Ninguém se atrevia a entrar. Os milicianos, por isso, não contavam com o auxílio de paisanos.
- A linha do trem, Zezé. As tropas vão chegar pela ferrovia.
O juízo do prefeito espreitava cada nicho de Vitória de Santo Antão.
A estação fora ocupada por homens com apenas peixeiras na bainha, nas cinturas. O telégrafo, proibido de operar.
- O rádio, Zezé. Logo a notícia vai se espalhar pelos rádios.
O estúdio da emissora de rádio, também ocupado; o microfone fora do ar. A Central Telefônica e os postos de gasolina.
Cinco mil camponeses tinham o controle de Vitória de Santo Antão.
Dia seguinte, numa caminhonete da Liga da Galileia, Zé dos Prazeres, junto a meia dúzia de homens, segue para Recife. Vai pedir ajuda ao governador Miguel Arraes. O carro sequer tem acesso à rua das Florentinas, em frente à Praça da República. Caminha sozinho para não ser notado. Na esquina, do lado contrário, vê o governador ser levado por homens armados, fardados, para dentro de um escasso Volkswagen.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
Nenhum comentário:
Postar um comentário