Como Cervantes
A
literatura é um terreno pantanoso, cheio de armadilhas e truques e o
trabalho que dá quase nunca é compensado pelos resultados. Ou seja,
na relação custo/benefício, apresenta imenso déficit no segundo
fator. Há exceções, claro, mas estas não contam, dado seu óbvio
caráter de excepcionalidade.
Dá
um trabalho dos diabos escrever bem, colocar em texto coisas
interessantes, criativas, úteis, corretas, bem escritas e que se
aproximem da perfeição (formal e espiritual). Para complicar, não
raro, quando conseguimos essa façanha, o produto de tanto esforço e
concentração passa batido. Ou seja, ninguém (ou quase ninguém) lê
essa boa produção. Qual o sentimento que resta? O de fracasso e de
frustração.
“Se
as coisas são como você diz, por que ainda continua escrevendo,
sacrificando descanso, vida social, lazer e perdendo noites e mais
noites, como Jacó, no Val de Jaboc, lutando com o anjo, para que
este o abençoe com um enredo excepcional, metáforas originais e
palavras precisas da primeira à última linha?”, poderá perguntar
o incrédulo aspirante a escritor ou aquele chato de sempre, que se
diverte em contestar tudo o que você afirma. Boa pergunta. Há anos,
faço-a a mim mesmo, sem que encontre resposta racional ou
minimamente convincente.
O
que é essencial para termos “alguma chance” de êxito na
literatura? Não existem fórmulas prontas para isso. Caso houvesse
esse tipo de manual de instrução, há tempos eu já estaria
rivalizando com, Balzac, Flaubert, Dostoievski ou Edgar Alan Poe,
entre dezenas de milhares de outros Óbvio que não chego nem aos
pés de nenhum deles. Faltaria talento? Não creio. Mas somente isso
não basta. Nem me falta garra e força de vontade, é mister que
destaque.
Perguntaram,
certa ocasião, em entrevista, ao laureado Prêmio Nobel de
Literatura, Gabriel Garcia Marquez, como fazer para se tornar bom
escritor. Gabo olhou bem para seu interlocutor, refletiu por uns 30
segundos, assumiu um ar bastante sisudo e respondeu: “Eu disse,
muitas vezes, que quando alguém senta para escrever tem que querer
ser melhor que Cervantes porque não chega a ser nem Cervantes”.
Qual a razão do escritor colombiano ter escolhido justo o autor do
Dom Quixote como exemplo, e não outro qualquer? Por considerar
Cervantes parâmetro de perfeição? Hummm! Nem tanto. Um pouco, sim,
mas não somente isso. Foi o primeiro nome que lhe veio à cabeça.
Mas
o “espírito” do conselho de Gabo é que, quando nos sentarmos
para escrever, devemos querer ser os melhores. Ou seja, não podemos
fazer concessões e redigir um texto qualquer às pressas, sem
concentração e nem convicção, pensando em outras coisas que não
o teor da escrita. Boa parte dos redatores que conheço age assim. Ou
seja, não se propõe a superar nem Miguel de Cervantes (embora
tenha, e todos tenhamos, a certeza que não chegaremos a ser sequer
“parecidos” com ele).
A
necessidade de me manter concentrado no que escrevo fez, entre outros
estragos, com que eu perdesse um montão de amigos e passasse a ser
considerado sujeito arredio, omisso e antissocial. Ocorre que no
momento em que fecho a porta do meu gabinete de trabalho, me isolo do
mundo. É como se eu fosse para outro planeta, para Marte digamos,
onde ninguém pode me alcançar por muito tempo. Nesse recinto, não
há telefone, nem fixo e nem celular. E o pessoal de casa está
proibido de me passar o aparelho quando há alguma chamada para mim.
Deve limitar-se a anotar recados quando a pessoa que telefona se
dispõe a dá-los ou recomendar-lhe que ligue em outra hora.
Aliás,
esse procedimento já me trouxe contratempos enormes. Explico. Quem
faz minha agenda de compromissos, por exemplo, é a esposa. E não
raro ela me avisa de alguma palestra que devo proferir ou de alguma
conferência agendada para eu ministrar, bem em cima da hora, sem que
eu tenha qualquer tempo de me preparar. Quando o tema é livre, não
há problema. Improviso e fica tudo bem. Afinal, falar nunca foi algo
que me inibisse ou assustasse, tanto para uma única pessoa, quanto
para 1.500, (público presente a uma das minhas preleções, na sede
paulistana da Sokka Gakai Internacional, em 1998). Remember que minha
primeira profissão foi a de locutor de rádio.
Às
vezes, contudo, o tema é dirigido e específico. Não dá, portanto,
para enrolar a plateia. Quem tem salvo meu pescoço, nessas
circunstâncias, é o bendito Google e meu providencial e onipresente
laptop. Em três tempos, com meia dúzia de clics, improviso o
esquema da palestra (ou da conferência), para pelo menos não falar
besteira, e deixo o resto por conta do talento de orador e carisma
pessoal no contato com o público.
Esse
isolamento ditado pela obsessão por literatura que se apossou de mim
nos últimos cinco anos priva-me do que mais gosto de fazer, quando
posso logicamente: de conversar. Sou tagarela de marca. Quem quiser
trocar ideias comigo (quando tenho tempo disponível, claro), tem que
cancelar todos seus demais compromissos do dia. Já cheguei a
conversar com um amigo, ao qual não via há alguns anos, por ter se
mudado para os Estados Unidos, por mais de catorze horas sem parar. E
não faltou assunto. Faltou foi tempo para que um dissesse ao outro
tudo o que pretendia.
O
engraçado é que as pessoas que não me conhecem pessoalmente têm
ideia a meu respeito diametralmente oposta ao que de fato sou.
Julgam-me sisudo, brusco, mal-humorado e até um tanto ríspido.
Surpreendem-se quando somos apresentados um ao outro. Muitos
tornam-se, já num segundo encontro, amigos para o resto da vida.
E
por que não exercito mais vezes esses contatos? Porque estou com a
cabeça inteiramente voltada para a literatura. Porque, quando sento
para escrever, faço o possível e impossível para ser ao menos como
Cervantes. Terei sucesso? Não sei e jamais saberei. A única certeza
que tenho é que, se não agir assim, serei o protótipo do escritor
fracassado. E a derrota eu não aceito. Não, pelo menos,
passivamente, sem lutar até o limite das minhas forças.
Boa
leitura!
O
Editor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário