A ilha que é grande
*
Por Anna Lee
Quando desembarquei pela
primeira vez na Vila do Abraão, já fazia tempo que eu espiava de
longe a Ilha Grande. Era um 20 de janeiro, dia de festa, dia de São
Sebastião. Diante da igrejinha do santo padroeiro, quase à beira do
mar, uma cruz avisava que aquela terra tinha dono, era de São
Sebastião. Aos que aportam ali, dizem, é garantida uma bênção.
Fiz o sinal da cruz, desejei ser abençoada e constatei: Aquele
pedaço de terra, ainda que cercado de água por todos os lados,
parecia ser em sua imensidade muito mais do que uma ilha.
Dona que é de corpulenta
imponência, a Ilha Grande chega a ser prepotente, chega parecer
continente. Ela é assim: colossal. Aqueles que precisam de
fundamentos para explicar as coisas do mundo costumam supor que o mar
invadiu um pedaço da terra daquela região, deixando de fora as
partes mais altas, entre elas, a Ilha Grande e seu arquipélago.
Quanto a mim, me resignei e me
deixei ser levada por seus contornos sinuosos, que as águas do mar,
espelhado de infinitos azuis e infinitos verdes, tocam, às vezes,
suavemente; noutras, em explosão. Nesse serpentear sem fim, descobri
uma impressionante sucessão de praias. Ao todo, 106. Todas elas são
diferentes umas das outras pela cor da areia, pela violência ou
calmaria do mar e pelo tamanho. Todas elas, únicas e individuais na
originalidade que as distingue na massa do oceano. E eu descobri a
praia do Amor, escondida na Enseada das Estrelas. Um lugar que, conta
a lenda, tem o poder de predestinar a vida dos amantes que nas suas
águas se beijam: serão um do outro até o final dos tempos. Senti
medo da certeza do futuro.
Impressionante também é a
sucessão de montanhas, nascidas abruptamente das águas, e de onde
surge um ponto culminante de tal forma nítido que, assim como o nome
da própria ilha, foi facilmente designado: “Bico do Papagaio”.
Ele realmente parece um papagaio, do qual só se pode ver o bico,
tendo o corpo gigantesco encoberto pelas montanhas ao redor. E tem
tudo a ver com o nome dado nos mapas europeus aos novos domínios
incorporados à Coroa Portuguesa: “Terra Papagalis”. Terra dos
papagaios.
Lá de cima, do “Bico do
Papagaio” – que Dom Pedro II, a bordo da corveta Nicteroy,
em 1863, julgou “demasiado adunco” – eu tive o mundo aos pés e
o céu às mãos; posso dizer. E, então a Ilha Grande, nua, exposta
em sua inteireza, me deu permissão para desvendar os rastros dos que
ali estiveram depois do desbravador André Gonçalves, em 6 de
janeiro de 1502: os colonizadores; os piratas; D. Pedro I; D. Pedro
II; os fazendeiros; os escravos; os leprosos; os presos políticos e
os “comuns”; e também os Tamoios, que já estavam antes dos
portugueses, franceses e holandeses; e ainda alguns pescadores, agora
chamados de amoladores, que, em tempos muito distantes, se apossaram
do morro da Ilhota do Leste e deixaram uma infinidade de material
arqueológico. E por último: os badjecos, descendentes dos
estrangeiros que povoaram a ilha; e também os forasteiros, que um
dia chegaram para uma visita e nunca mais conseguiram partir.
Percorri a Ilha Grande durante
quatro meses, entre idas e vindas. Mesmo assim, hoje, continuo com a
sensação de que ela permanece indecifrada, numa insistência em não
só fazer jus ao seu nome de Grande, mas à fama de “jóia dos
reis”.
P.S.: Das lembranças da Ilha
Grande, quando escrevi o livro “Jóia dos Reis” com o Cony, o
João de Orleans e Bragança fotografou e o Sergio Caringi produziu.
*Jornalista, mestranda em
Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O
Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre
outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e
nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.
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