domingo, 6 de maio de 2018

A ilha que é grande - Anna Lee


A ilha que é grande


* Por Anna Lee


Quando desembarquei pela primeira vez na Vila do Abraão, já fazia tempo que eu espiava de longe a Ilha Grande. Era um 20 de janeiro, dia de festa, dia de São Sebastião. Diante da igrejinha do santo padroeiro, quase à beira do mar, uma cruz avisava que aquela terra tinha dono, era de São Sebastião. Aos que aportam ali, dizem, é garantida uma bênção. Fiz o sinal da cruz, desejei ser abençoada e constatei: Aquele pedaço de terra, ainda que cercado de água por todos os lados, parecia ser em sua imensidade muito mais do que uma ilha.

Dona que é de corpulenta imponência, a Ilha Grande chega a ser prepotente, chega parecer continente. Ela é assim: colossal. Aqueles que precisam de fundamentos para explicar as coisas do mundo costumam supor que o mar invadiu um pedaço da terra daquela região, deixando de fora as partes mais altas, entre elas, a Ilha Grande e seu arquipélago.

Quanto a mim, me resignei e me deixei ser levada por seus contornos sinuosos, que as águas do mar, espelhado de infinitos azuis e infinitos verdes, tocam, às vezes, suavemente; noutras, em explosão. Nesse serpentear sem fim, descobri uma impressionante sucessão de praias. Ao todo, 106. Todas elas são diferentes umas das outras pela cor da areia, pela violência ou calmaria do mar e pelo tamanho. Todas elas, únicas e individuais na originalidade que as distingue na massa do oceano. E eu descobri a praia do Amor, escondida na Enseada das Estrelas. Um lugar que, conta a lenda, tem o poder de predestinar a vida dos amantes que nas suas águas se beijam: serão um do outro até o final dos tempos. Senti medo da certeza do futuro.

Impressionante também é a sucessão de montanhas, nascidas abruptamente das águas, e de onde surge um ponto culminante de tal forma nítido que, assim como o nome da própria ilha, foi facilmente designado: “Bico do Papagaio”. Ele realmente parece um papagaio, do qual só se pode ver o bico, tendo o corpo gigantesco encoberto pelas montanhas ao redor. E tem tudo a ver com o nome dado nos mapas europeus aos novos domínios incorporados à Coroa Portuguesa: “Terra Papagalis”. Terra dos papagaios.

Lá de cima, do “Bico do Papagaio” – que Dom Pedro II, a bordo da corveta Nicteroy, em 1863, julgou “demasiado adunco” – eu tive o mundo aos pés e o céu às mãos; posso dizer. E, então a Ilha Grande, nua, exposta em sua inteireza, me deu permissão para desvendar os rastros dos que ali estiveram depois do desbravador André Gonçalves, em 6 de janeiro de 1502: os colonizadores; os piratas; D. Pedro I; D. Pedro II; os fazendeiros; os escravos; os leprosos; os presos políticos e os “comuns”; e também os Tamoios, que já estavam antes dos portugueses, franceses e holandeses; e ainda alguns pescadores, agora chamados de amoladores, que, em tempos muito distantes, se apossaram do morro da Ilhota do Leste e deixaram uma infinidade de material arqueológico. E por último: os badjecos, descendentes dos estrangeiros que povoaram a ilha; e também os forasteiros, que um dia chegaram para uma visita e nunca mais conseguiram partir.

Percorri a Ilha Grande durante quatro meses, entre idas e vindas. Mesmo assim, hoje, continuo com a sensação de que ela permanece indecifrada, numa insistência em não só fazer jus ao seu nome de Grande, mas à fama de “jóia dos reis”.

P.S.: Das lembranças da Ilha Grande, quando escrevi o livro “Jóia dos Reis” com o Cony, o João de Orleans e Bragança fotografou e o Sergio Caringi produziu.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.



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